Correio de Carajás

O valor do trabalho e a cor do salário

Por: Por Giliad de Souza Silva

Antes que se avance na leitura desta crônica, é preciso fazer um aviso. Há quem se incomode com dados – não pela sua imprecisão, mas pelo que revelam. Há quem olhe para os números e desconfie não da desigualdade, mas de quem a denúncia. Este texto não é para os que preferem acreditar que o mundo é justo só porque assim lhes convém. Nem para os que se recusam a ver a realidade tal como ela é, filtrando tudo através dos próprios preconceitos. Há gente que, mesmo diante de fatos consolidados, pesquisas rigorosas e evidências empíricas, insiste em dizer que “não é bem assim”, que “é vitimismo” ou que “o mérito supera tudo”. A esses, talvez esta leitura seja desconfortável – como deve ser. Porque as evidências nos dizem que: o Brasil é um país racista e misógino, e isso se traduz, diariamente, em salários, acessos, ausências e silêncios.

Julho é o mês da mulher negra latino-americana e caribenha. É o mês de Tereza de Benguela. É o mês de Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento. É o mês que celebra, denuncia e reivindica. Mas também é o mês que escancara o quanto ainda se naturaliza o lugar da mulher negra na base da pirâmide social. Porque no Brasil, ser mulher e negra é quase uma condenação a ganhar menos, ter menos acesso, ser menos ouvida – mesmo fazendo mais.

No Brasil, o trabalho tem cor, gênero e CEP. E, em boa parte dos casos, o salário também. Entre planilhas e gráficos, há uma história que não cabe nas colunas numéricas, mas se repete em cada cidade, em cada bairro, em cada esquina onde se vende força de trabalho por menos do que vale. Uma história em que ser mulher, negra e pobre não é apenas um dado identitário – é quase uma sentença de desvalorização.

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Quantos casos, nas atividades agrupadas por atividade econômica (CNAE 5d* – 670 atividades), sua remuneração foi igual ou maior que a média de homens brancos
Mulheres em geral 3,4%
Mulheres Brancas 9,9%
Mulheres Negras 0,9%
Homens Negros 1,3%

Fonte: RAIS. Elaboração própria.

*CNAE 5d: Classificação Nacional de Atividades Econômicas com 5 dígitos.

 

Os dados sobre mercado de trabalho, ocupação e renda revela a realidade como ela é. Eles mostram que, entre os 670 setores da economia analisados, em nenhum deles as mulheres negras recebem, em média, o mesmo que os homens brancos. Nenhum. Zero. A desigualdade é universal, persistente e sistemática. Não é acidental nem circunstancial. É estrutural.

Não se trata de imaginar que todos deveriam ganhar exatamente a mesma coisa. Mas se trata, sim, de perguntar por que, mesmo em funções similares, a remuneração varia tanto quando muda a cor da pele ou o gênero de quem executa. Por que uma mulher negra, em média, ganha menos de 60% do que um homem branco, mesmo no setor de serviços de alimentação, onde ambos estão presentes em grande número e desempenham tarefas parecidas? Ou por que, no setor jurídico, ela recebe apenas 37% do que ganha o colega branco e homem? São perguntas que os dados gritam, mas que o cotidiano, muitas vezes, silencia.

É curioso – e cruel – observar que, nos setores onde a desigualdade é menor, a renda também é mais baixa. Das dez áreas com maior paridade salarial entre mulheres negras e homens brancos, seis estão entre as que pagam os piores salários. Em outras palavras: a “igualdade” acontece onde o salário é tão baixo que ninguém ganha bem. Igualdade na precariedade. Já nos setores mais ricos, a desigualdade explode. Quanto maior o bolo, menor a fatia para quem carrega a travessa.

É como se o Brasil dissesse, todos os dias: quando a economia cresce, ela não leva todo mundo junto. Ela leva os de sempre. Os outros ficam assistindo – quando não são usados como alicerce para que poucos subam. E isso não é só uma injustiça ética. É um atraso econômico. Porque nenhuma sociedade avança desperdiçando o potencial da maior parte de sua população.

As mulheres negras, por exemplo, são mais de 27% da força de trabalho brasileira. Estão nas escolas, nos hospitais, nas fábricas, nos escritórios e nos aplicativos. São cabeças de família, sustento de muitos lares. E, ainda assim, permanecem no rodapé da pirâmide salarial. Não por falta de esforço. Mas por excesso de barreiras.

A cor da pele e o gênero operam como filtros de acesso ao mundo do trabalho formal, aos cargos de chefia, às profissões mais valorizadas. O racismo e o machismo, em vez de velhos discursos abstratos, se materializam em contracheques, oportunidades negadas, olhares atravessados em entrevistas de emprego. E tudo isso acontece sem que seja preciso declarar nada abertamente. A desigualdade não precisa mais se anunciar – ela já está embutida no funcionamento “automático” do mercado.

O mais grave é que esses números nem são novidade. Eles apenas atualizam um mapa que o país já conhece, mas teima em não percorrer com atenção. Um mapa que mostra que o salário é também um espelho da história. Que a abolição da escravidão nunca se traduziu em abolição da desigualdade. Que a entrada das mulheres negras no mercado de trabalho não significou, por si só, acesso à renda ou reconhecimento.

É por isso que não basta dizer que “o mercado é assim mesmo” ou que “o mérito explica tudo”. Porque, quando as regras do jogo são marcadas por séculos de exclusão, continuar jogando do mesmo jeito é apenas repetir o que sempre foi. A meritocracia, nesse cenário, é como uma corrida em que uns largam na frente com tênis de competição e outros descalços, com o asfalto esquentando os pés.

Essa crônica não é sobre números. É sobre gente. Sobre a cozinheira que cuida da refeição de centenas e leva para casa um salário que mal alimenta seus próprios filhos. Sobre a auxiliar de enfermagem que não parou um dia sequer durante a pandemia, mas nunca viu a cor de um bônus. Sobre a jovem negra que terminou a faculdade com louvor, mas ainda é tratada como exceção – ou como estagiária eterna. É sobre elas que os números falam, mesmo sem dizer seus nomes.

O país que se orgulha de sua diversidade precisa olhar com mais seriedade para o modo como essa diversidade é tratada na economia. A justiça racial e de gênero não será alcançada apenas com discursos. Ela exige mudanças concretas: políticas públicas, revisão de práticas empresariais, enfrentamento ao racismo institucional e, sobretudo, vontade política.

Porque, no fim das contas, a pergunta que os dados deixam no ar é simples – e brutal: quanto vale o trabalho de uma mulher negra no Brasil? E a resposta, hoje, ainda envergonha.

 

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.