Envelhecer sendo uma mulher trans na Amazônia é, antes de tudo, um ato político. Aos 53 anos, Letícia Werneck carrega no corpo e na memória as marcas de quem foi pioneira em existir publicamente como travesti em Marabá, nos anos em que a palavra “visibilidade” ainda nem fazia parte do vocabulário político da comunidade LGBT+. Envelhecer, para ela, não foi um peso, foi uma construção.
Na data em que se celebra o “Dia do Orgulho”, Letícia conta sobre ter crescido se vestindo de mulher, fala sobre seu papel como produtora cultural, fundadora da Parada LGBT de Marabá e de como formou família sem abrir mão da própria identidade.
Hoje, ao olhar para trás, Letícia não se vê como vítima nem como heroína. Ela é o que é. E se a sabedoria dela não veio dos livros ou das salas de aula, veio das ruas e da vida. Envelhecer, no caso dela, não significou apagar-se. Foi justamente o contrário: foi alcançar o ponto em que ninguém mais pode ignorar sua existência.
Leia mais:Nesta entrevista ao Correio de Carajás, Letícia Werneck fala com franqueza sobre família, política, identidade, juventude e os conflitos dentro e fora da comunidade LGBT+. Suas falas, duras e lúcidas, são memória viva de um tempo que ainda se repete, mas que só continuará se não for narrado.
Correio de Carajás: Quem é a Letícia Werneck?
Letícia Werneck: É filha de Marabá, tem 53 anos e é a primeira mulher trans da cidade e a primeira que conquistou um espaço na sociedade, na comunidade empresarial e com o povão. Acho que a primeira conquista tem que ser através do respeito e eles me abraçaram. Eu tenho um relacionamento afetivo há 32 anos, com um homem e tenho uma filha adotada legalmente, a Estrela Gama. Profissionalmente eu me destaquei no município como produtora de eventos em algumas das melhores casas noturnas de Marabá, a Vitrine 403, O Farol, Santo Gole e Choperia n1, além de outros eventos e grandes shows em Marabá.
Correio de Carajás: Como têm sido envelhecer sendo uma pessoa LGBT em Marabá?
Letícia: Envelhecer sendo uma mulher trans, pra mim, não foi uma dificuldade. Comecei muito jovem, e isso me preparou. Desde cedo precisei me defender do preconceito, mostrar a minha realidade, provar que o preconceito não leva ninguém a lugar nenhum.
Hoje, com 53 anos, vejo que a gente conquistou espaços importantes. Temos mais oportunidades para discutir políticas públicas, coisa que lá atrás a gente nem sonhava. E eu estou aqui, firme, sempre lutando pelos direitos da igualdade, pela melhoria do nosso movimento e pela defesa do grupo LGBTQIA+.
Se eu pudesse dizer algo pra Letícia de 20 anos, eu diria: “Cuida mais de ti, olha mais pra si mesma”. Porque eu me doei demais. Lutei pelos outros mais do que por mim. E tudo que eu sofri, eu não desejo pra ninguém. Porque essa realidade de hoje — que muitos acham fácil — só existe porque mulheres como eu abriram caminho. Chegar até onde a Letícia Werneck chegou, não foi fácil.
Correio de Carajás: Ao longo desses anos, como você definiu sua identidade enquanto pessoa LGBT+?
Letícia: Graças a Deus, eu não tenho problemas em me apresentar como uma mulher trans, até porque eu já vivo aqui há muitos anos, correndo atrás e sempre mostrando o respeito com a sociedade e com o povo em si. Acredito que na minha jornada não tive muita dificuldade, e sim um pouco de curiosidade por parte das pessoas que não me conheciam. Quando uma trans se apresenta, tem aquele susto, mas a partir do momento que conheciam a pessoa Letícia Werneck, todos eles, graças a Deus, sempre se agradaram.
Correio de Carajás: Desde muito nova você já tinha clareza sobre quem era e o que queria. Em que momento essa vivência começou a se transformar em identidade e desejo de formar uma família?
Letícia: Desde a minha juventude eu já tinha consciência de tudo que eu queria. Com 6, 7 anos, meu sonho era ter uma boneca Estrela. Eu brincava muito com minhas primas e acabava pegando escondido essas bonecas, elas pegavam de volta e eu passei a prometer para mim mesma que um dia eu ia ter uma boneca bonita de verdade. E agora eu tenho a minha Estrela, minha filha, através dessa força de vontade da minha adolescência.
Eu vivi isso como um trauma. Não de uma forma vingativa, mas sim com uma vontade de me realizar, mas não como mulher, porque a mulher é sagrada. Eu jamais quis me comparar como uma mulher, mas foi um meio que eu arrumei de poder dizer que eu poderia construir uma família.
Correio de Carajás: Como foi para você sobreviver e construir caminhos sendo uma pessoa LGBT+ em Marabá desde tão jovem? Que experiências mais marcaram essa trajetória?
Letícia: Eu fugi de casa e ninguém queria dar oportunidade para um menino de 13 anos. Para que eu pudesse sobreviver, para as pessoas me acolherem em uma residência, para que eu tivesse a oportunidade de ter um lugar para dormir e para se alimentar, eu tive que me montar de mulher. As pessoas sabiam que eu não era, mas me deixavam ficar, me colocavam para lavar louças. Coisas que como menino eu não teria a oportunidade.
As pessoas acham que eu enfrentei preconceitos, mas isso em todo lugar tem. Eu sempre encarei e respeitei o motivo da pessoa ter esse preconceito. Porque através da minha humildade, simplicidade, eu acabava conquistando as pessoas e isso fazia elas me dar oportunidade. Não por ser diferente, mas por fazer o melhor diante das situações que eu passava.
Porque na verdade, o preconceito não está só no mundo LGBT. É com o negro, com branco, com índio, e até mesmo com héteros. Vem muito da pessoa e sempre procurei fazer a diferença.
Correio de Carajás: Como você lida com os julgamentos e preconceitos, inclusive os que vêm de dentro da própria comunidade LGBT+?
Letícia: Na verdade, foi o contrário. Tanto que eu não me preocupo com o preconceito de ninguém. Às vezes a pessoa até fala: “Eu pensei que era uma mulher, moça, mas é um veado”. Eu finjo que não ouvi, mas procuro uma oportunidade de mostrar que aquele julgamento, a forma agressiva que falou, não tem nada a ver com a minha personalidade.
Às vezes, para que você tenha o direito de cobrar respeito, é preciso primeiro mostrar que sabe se impor. Já passei por situações em que a pessoa gritava de longe: “Ei, ei, é viado, é?”. Aí eu chegava perto e perguntava: “Você tá falando comigo?”. E dizia: “Na verdade, eu não sou viado. Também não sou mulher como a sua mãe é, mas eu sou algo que me satisfaz. Eu me sinto bem assim. Por que o meu jeito te incomoda tanto?”. Geralmente, quando a gente confronta, a pessoa se enrola, se incomodou é porque tem alguma coisa. Mas no fundo, o que mais incomoda mesmo são as mariconas, e isso vem até de dentro da própria comunidade.
Hoje em dia é curioso, muitos gays não gostam de trans. Porque a trans, para eles, representa uma ameaça. Não é por medo de que a gente vá “tomar o bofe” da machuda — falando português claro —, mas porque a gente incomoda. Somos vistas como agressivas. E, muitas vezes, até dentro da própria comunidade, essa agressividade vira resistência. E ela existe até contra mim.
Correio de Carajás: Hoje não participa mais diretamente da Parada LGBT de Marabá. O que te levou a essa decisão?
Letícia: Fui eu que fundei a Parada LGBT de Marabá. Organizei a primeira, segunda, terceira e quarta edições. Na quinta, chamei o Noé Lima para dar continuidade. Hoje não participo mais diretamente da parada. Por quê? Porque a parada não me ajudou a diminuir o preconceito. Não me ajudou a conquistar meu marido. Não me ajudou a ser reconhecida como mulher, nem a lutar pelos meus direitos. A parada é como um rio: você rema, rema, mas não sai do lugar.
Me afastei do projeto quando começaram a pressionar para eu levar meu marido e minha filha. Diziam que ia ser top, que a imprensa ia adorar: ‘Uma mãe trans com a filha e o marido na parada’. Mas eu disse: não. Isso não é o que eu quero para minha filha.
Hoje, ela sabe quem eu sou. Sabe que a mãe dela é uma mulher trans. E está preparada. Já ouviu na escola que a mãe dela era homem, e respondeu: ‘Não. A minha mãe não é homem. A minha mãe é uma trans. Pesquisa no Google que você vai saber’. Ela tem orgulho de mim. E eu a eduquei para isso: para me amar como eu sou e amar a mãe (biológica) dela também.
Correio de Carajás: Você já enfrentou resistência dentro da própria comunidade LGBT? Como foi essa experiência?
Letícia: Primeiro, eu não queria que minha família fosse uma vitrine. Afinal, qual é o verdadeiro conteúdo da Parada LGBT para conquistar as pessoas? É ver dois homens se beijando no meio da rua? Eu fui vaiada por não aceitar o “beijaço”. Gente, para! O povo fica lotando a Parada LGBT, mas dizem que tem que beijar para mostrar, para os outros verem. Eu sempre falei: “Está errado, não tem por que ficar exibindo isso assim”. Isso é uma verdadeira afronta, porque tem família, tem criança ali. E tem gente que diz: “Ah, tem que beijar mesmo”.
De certa forma eu também enfrentei preconceito dentro da própria comunidade LGBT. Mas é como em qualquer outro espaço profissional: tem disputa, tem rivalidade, tem vaidade. Tive várias oportunidades de fazer harmonização, colocar silicone, colocar bundão. Mas sempre me perguntei: pra quê? Se o meu marido me aceitou exatamente como eu sou, pra quê mudar? Tem gente que coloca peito, tira o pinto, querendo ser mais mulher que a própria mulher. Isso não existe.
Já participei de eventos sobre homossexualidade e vi trans querendo que eu pedisse desculpas por chamar outra de “viado”. Aí eu retruco: “Tu tem pica, adianta de quê?”. Agora tem até as operadas. Tiram o pinto, mas continuam com a alma carregada de sexo. O espírito não muda. Pode até operar, mas o jeito de falar, o gênero, isso não se troca. Já vi casos em que a trans operada ainda fala com a voz grossa, perde o bofe pra um veadinho de perereca. E aí? Adiantou mudar o corpo? Até hoje, nunca mudei isso. Mesmo com as disputas internas, continuo firme com meus valores.
Correio de Carajás: O que a escola da vida te ensinou que nenhuma sala de aula poderia ensinar?
Letícia: Do meu tempo pra cá, muita coisa mudou. Eu tive que me vestir de mulher pra ser aceita, para conseguir um prato de comida. Hoje, não. Hoje você vê as bichas estudando, fazendo faculdade, buscando um outro tipo de vida. Antes, a gente só era conhecida como cozinheira, cabeleireira, trabalhadora doméstica. Agora não. Tem gay em todo lugar. Isso é bonito. Mas também traz novos desafios, porque onde tem gente, tem vício, tem problema, e não é só questão de ser gay ou não.
Eu mesma não tive a chance de estudar. Não podia. Como é que eu ia entrar numa escola sendo toda afeminada? Naquela época, não aceitavam. A sabedoria que eu tenho hoje não veio da escola. Veio da rua. Foi a escola da vida que me ensinou.
(Luciana Araújo)