Correio de Carajás

O lugar da Amazônia no desenvolvimento brasileiro: quando o desenvolvimento desestrutura territórios e desenraíza vidas

O padrão de acumulação é, em termos simples, a forma como o capitalismo organiza a geração e a expansão da riqueza. Funciona assim: o capital investe, extrai lucro e reinveste esse lucro para gerar ainda mais capital. Esse ciclo é o motor que faz o capitalismo girar. Mas essa dinâmica não acontece de forma solta no mundo, nem de maneira homogênea. Ela precisa de territórios, de leis, de infraestrutura e de relações sociais que permitam que isso aconteça. Por isso, todo padrão de acumulação combina dois elementos: um arranjo econômico, que define quais atividades são centrais para gerar riqueza, e um arranjo institucional, que garante as condições para que esse modelo funcione — com regras, incentivos, investimentos públicos e, muitas vezes, concessões ambientais e trabalhistas.

No Brasil de hoje, esse modelo tem na Amazônia uma de suas principais bases de sustentação. A floresta virou uma imensa plataforma de extração de recursos naturais voltados, sobretudo, para exportação. É na Amazônia que estão as maiores minas, as maiores hidrelétricas e as fronteiras agrícolas que mais crescem no país. É lá que o minério de ferro, a soja, a carne e a madeira são produzidas em larga escala para atender as demandas do mercado global. Esse movimento não é por acaso: a abundância de recursos, combinada com um modelo institucional que facilita licenciamentos, flexibiliza normas ambientais e oferece infraestrutura logística, faz da Amazônia o coração pulsante do atual padrão de acumulação brasileiro. O problema é que essa riqueza não se traduz em desenvolvimento para quem vive na região — ao contrário, o avanço desse modelo vem acompanhado de conflitos, destruição ambiental e negação dos direitos dos povos da floresta.

A imposição desse padrão de acumulação produz uma série de impactos estruturais sobre os povos amazônicos, que podem ser sintetizados em duas dimensões interligadas: (i) a oposição estrutural entre as atividades econômicas predominantes – mineração e agropecuária – e os modos de vida dos povos amazônicos; e (ii) a construção e reprodução de processos de desterritorialização, tanto física quanto simbólica. As atividades econômicas predominantes na Amazônia – mineração, agronegócio, exploração florestal e geração de energia – estão, estruturalmente, em oposição aos modos de vida dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e demais comunidades tradicionais.

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Isso decorre de uma incompatibilidade profunda entre as lógicas que estruturam esses modelos econômicos e as formas de reprodução sociocultural dos povos amazônicos. Enquanto o padrão de acumulação busca transformar os territórios em plataformas de extração, os povos amazônicos baseiam sua reprodução social em práticas que pressupõem a integridade dos ecossistemas, a gestão coletiva dos recursos naturais e a manutenção dos vínculos culturais, espirituais e simbólicos com a terra, os rios e a floresta.

A mineração, por exemplo, não apenas consome abundância de água, energia e território, mas também produz externalidades ambientais severas, como contaminação de rios, degradação dos solos, emissão de rejeitos e destruição de habitats. A instalação de projetos minerários implica frequentemente a remoção forçada de comunidades, a sobreposição de interesses minerários sobre territórios indígenas e quilombolas e o aumento dos conflitos socioambientais.

No caso da agropecuária, o avanço da fronteira agrícola, impulsionado principalmente pela soja, milho e pecuária extensiva, implica desmatamento, queimadas, degradação de bacias hidrográficas e intensificação dos processos de apropriação privada da terra. As monoculturas se expandem sobre territórios coletivos, quebrando as cadeias ecológicas e inviabilizando os modos de vida que dependem da biodiversidade e do uso múltiplo dos recursos.

Além disso, a lógica do agronegócio está assentada na concentração fundiária, na mecanização intensiva e na dependência de insumos externos – fertilizantes, defensivos agrícolas e sementes transgênicas –, modelos que são incompatíveis com os sistemas produtivos tradicionais, baseados na policultura, na pesca, no extrativismo e na agricultura itinerante. Portanto, não se trata apenas de impactos colaterais ou de falta de regulamentação.

A própria lógica do padrão de acumulação primário-exportador é, por definição, excludente e incompatível com a existência dos povos da floresta. Esses povos não são considerados agentes econômicos produtivos na ótica do mercado global, mas obstáculos ao avanço dos projetos extrativos e agroindustriais. O impacto não se limita à desterritorialização física – deslocamentos forçados, expulsões, remoções –, embora esta seja uma realidade constante na Amazônia. Trata-se também da construção de um sentimento de desterritorialização, que opera de maneira simbólica, cultural, jurídica e epistemológica.

Esse sentimento de desterritorialização se manifesta na ruptura dos vínculos que os povos amazônicos mantêm com seus territórios, rompendo os laços de pertencimento, as práticas culturais e os sistemas de conhecimento tradicionais. A transformação da floresta em mercadoria – seja na forma de minério, de grãos, de carne ou de créditos de carbono – implica, necessariamente, a negação dos sentidos sociais, simbólico e econômicos que esses povos atribuem ao território).

Do ponto de vista jurídico, esse processo se expressa em “ir passando a boiada”, ou seja, flexibilização dos marcos legais de proteção ambiental, na fragilidade dos mecanismos de regularização fundiária, na omissão ou na conivência do Estado frente aos conflitos fundiários e nas tentativas constantes de desmonte dos direitos territoriais assegurados pela Constituição Cidadã de 1988.

Do ponto de vista simbólico, há uma permanente tentativa de deslegitimar os saberes, os modos de vida e as formas de organização dos povos amazônicos, impondo narrativas que os associam ao atraso, à improdutividade ou ao entrave ao desenvolvimento. Essas narrativas são reproduzidas não apenas pelos agentes econômicos, mas também por setores do Estado, da mídia e das elites econômicas nacionais e internacionais.

Esse processo também se manifesta na reorganização dos territórios, que passam a ser redesenhados a partir das necessidades do capital. Novas fronteiras são estabelecidas, não mais baseadas nos fluxos ecológicos, nas redes de sociabilidade ou nas dinâmicas culturais, mas nos corredores logísticos, nas cadeias globais de valor e nas demandas do mercado internacional. Portanto, o processo de desterritorialização não é um subproduto do desenvolvimento. Ele é, na verdade, uma condição estrutural para a viabilização do atual padrão de acumulação. Ao esvaziar os territórios de seus significados sociais, culturais e espirituais, cria-se as condições para sua conversão em ativos econômicos plenamente integrados às lógicas do mercado global.

Em síntese, a centralidade da Amazônia no atual padrão de acumulação não se traduz em desenvolvimento compatível com a sociobiodiversidade amazônica, tampouco em melhoria das condições de vida das populações locais. Ao contrário, esse modelo reproduz uma dinâmica de espoliação, concentração de renda, degradação ambiental e negação dos direitos territoriais, culturais e sociais dos povos amazônicos. A oposição estrutural entre as atividades econômicas baseadas nas exportações de commodities e os modos de vida dos povos da floresta não é uma falha do modelo, mas sua própria condição de existência.

Da mesma forma, o processo de desterritorialização – tanto física quanto simbólica – não é um efeito colateral, mas um mecanismo central de funcionamento da concretude deste padrão de acumulação na Amazônia. Este cenário impõe desafios profundos para as políticas públicas, para os movimentos sociais e para as próprias reflexões acadêmicas, exigindo não apenas a denúncia dos impactos, mas a construção de alternativas que reconheçam os direitos territoriais, valorizem os saberes tradicionais e enfrentem as contradições estruturais do modelo econômico vigente.

Por Giliad de Souza Silva

 

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.