Correio de Carajás

Como a IA transforma o dia a dia de operadores do direito em Marabá

De advogado a juiz, profissionais da área jurídica falam ao CORREIO DE CARAJÁS sobre a potencialização do uso da inteligência artificial na profissão

A inteligência artificial está se expandindo por praticamente todos os segmentos e no direito já é uma grande realidade/Foto: Freepik

A inteligência artificial tem revolucionado diversos setores, e a área jurídica não é uma exceção a essa regra. É possível afirmar que a advocacia e o Poder Judiciário têm experimentado, nos últimos anos, transformações significativas impulsionadas pela utilização de tecnologias inteligentes, que não apenas otimizam processos, mas também redefinem a forma de atuação, de como os casos são analisados e como a justiça é administrada.

A IA pode ser definida como um conjunto de tecnologias que permitem às máquinas realizar tarefas que, tradicionalmente, exigiriam inteligência humana, como aprendizado, raciocínio e tomada de decisões. No contexto jurídico, a IA é aplicada para analisar grandes volumes de dados, identificar padrões e fornecer insights que auxiliam advogados, promotores, defensores públicos e juízes em suas atividades.

Em Marabá, diversos profissionais do Direito já experimentam as ferramentas fornecidas pela IA. O Correio de Carajás conversou com dois advogados, uma promotora de Justiça, um juiz e um defensor público.

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“O Direito continua sendo humano. A tecnologia é um meio para fortalecer a Justiça”, afirma o advogado Abrahão Neto.

Advogado, secretário da Comissão de Prerrogativas da OAB Marabá e um estudioso sobre ferramentas de inteligência artificial, Abrahão Neto conversou com a reportagem do CORREIO sobre o uso da IA no dia a dia da advocacia.

Abrahão Neto: “O Direito continua sendo humano. A tecnologia é um meio para fortalecer a Justiça”

“A inteligência artificial na advocacia deve ser vista como um braço técnico, não como um cérebro autônomo. Cabe ao profissional do Direito comandar as ferramentas, e não ser comandado por elas. O uso de IA não é mais uma novidade no universo jurídico — é uma realidade em rápida consolidação. Da redação automatizada de peças processuais à análise de jurisprudência com apoio em jurimetria (a aplicação de métodos estatísticos e análises quantitativas no campo do Direito), o uso dessas ferramentas já está transformando profundamente a forma como se exerce a advocacia e como opera o próprio sistema de justiça”, explica.

Segundo Abrahão, no campo da advocacia privada, o uso da IA vai desde o gerenciamento de prazos até a geração de petições preliminares e pareceres com base em dado estruturados. Ele ressalta que tudo isso deve ser feito sob a responsabilidade do advogado, já que a IA não possui discernimento jurídico e nem responde por consequências legais.

“Ainda há resistência por parte da comunidade jurídica, que enxerga o uso da inteligência artificial com desconfiança, como se o apoio tecnológico fosse sinal de preguiça ou limitação técnica. Essa visão é não apenas equivocada, mas perigosa. A inteligência artificial é uma ferramenta que expande a capacidade do advogado, não que reduz sua importância. O Direito continua sendo humano — e a tecnologia, um meio para fortalecer a Justiça”.

O advogado salienta que no futuro a advocacia será digital e que o profissional precisará dominar a tecnologia, sem abrir mão, é claro, do bom senso e do conhecimento jurídico.

“A OAB tem um papel crucial nesse cenário que é de orientar, capacitar e garantir que o uso da IA respeite os princípios fundamentais da profissão. Não se trata de substituir o pensamento jurídico, mas de ampliá-lo com inteligência e propósito.  O tempo da negação já passou. O desafio agora é integrar a inovação com consciência e responsabilidade, transformando ferramentas em aliadas e o futuro em presente”, conclui. (Ana Mangas)

 

Como a IA transforma o dia a dia do Ministério Público

 

Ao CORREIO, a promotora de Justiça da Execução Penal de Marabá, Daniella Maria dos Santos Dias, detalha como a tecnologia vem revolucionando sua rotina, permitindo um foco maior em casos complexos e estratégias jurídicas. Para ela, com a imensa quantidade de informações recebidas, desde inquéritos policiais extensos até processos complexos, o uso da inteligência artificial tem permitido, por exemplo, fazer uma triagem e categorização inicial dos documentos, identificando padrões e conexões em grandes volumes de dados que seriam humanamente impossíveis de processar ao mesmo tempo.

“Embora a decisão final e a análise crítica sejam sempre humanas, a IA pode auxiliar na geração de minutas de documentos padronizados, como ofícios, manifestações simples ou até mesmo peças iniciais. Isso me libera para dedicar mais tempo a casos que exigem análise mais aprofundada e estratégia jurídica complexa. É importante deixar claro que a IA não decide nem pode decidir por mim, mas ela pode fornecer insights valiosos baseados na análise de dados e precedentes. Por exemplo, pode apontar pontos fracos ou fortes em uma argumentação, sugerir linhas de investigação etc”, explica.

A experiente promotora Daniella Dias detalha como a tecnologia vem revolucionando sua rotina

A promotora ressalta que a IA tem auxiliado significativamente, substituído tarefas que antes eram manuais para processos automatizados. Contudo, isso não significa que os “robôs” estão tomando decisões no lugar de humanos, mas sim que, uma série de atividades repetitivas e de baixo valor agregado, que antes consumiam um tempo precioso de membros e servidores, agora são realizadas de forma mais eficiente.

O Ministério Público do Estado do Pará assumiu o protagonismo e criou o Comitê de Governança de Inovação e Inteligência Artificial, composto pelo Escritório de Inteligência Artificial e o Escritório de Inovação, através da Portaria nº 1927/2025-MP/PGJ, que tem, dentre vários objetivos, disseminar a cultura da inovação e da Inteligência Artificial no MPPA, visando aprimorar os serviços prestados à sociedade.

Questionada se acredita que essas ferramentas estarão inseridas mais ainda no dia a dia das promotorias, ela afirma que sim, e não apenas como uma possibilidade, mas uma necessidade e evolução natural.

“A IA consegue processar e correlacionar volumes massivos de dados e documentos (áudios, vídeos, textos, transações financeiras) em tempo recorde e impressionante. Isso é crucial em investigações e tomadas de decisão, tanto administrativas quanto judiciais. Por outro lado, é fundamental que essa inserção seja feita de forma ética e responsável, com atenção à segurança dos dados, à transparência dos algoritmos e à garantia de que a tecnologia seja uma ferramenta a serviço da justiça e dos direitos, e não o contrário. A capacidade humana de análise crítica, a sensibilidade e a ética continuarão sendo insubstituíveis”, finaliza Daniella Maria. (Ana Mangas)

 Defensoria também tem avançado com uso de IA

 

Procurado pela reportagem do CORREIO, o defensor público Allysson Castro explica que a Defensoria Pública do Estado do Pará tem avançado bastante no uso de ferramentas tecnológicas para otimizar o trabalho e garantir mais celeridade e eficiência no atendimento às pessoas assistidas.

“Ela vem testando e aplicando soluções baseadas na inteligência artificial, como o próprio ChatGPT, principalmente para dar o apoio na redação de peças, na organização de informações e na fundamentação jurídica mais alta, mais ágil, entre outras demandas do dia a dia”.

Allysson Castro: “nesse caminho de inovação, estamos estudando o uso dessa ferramenta sempre amparados na ética”

Por outro lado, ele pondera que tudo isso deve ser feito com bastante critério e responsabilidade, sempre mantendo o olhar técnico, humano e com a sensibilidade que o trabalho na Defensoria exige.

“A ideia do nosso trabalho com a inteligência artificial não é substituir o homem, o raciocínio jurídico, mas potencializar o que já fazemos, economizando tempo com tarefas repetitivas. Assim, podemos focar mais na estratégia e no contato com quem mais precisa da defensoria pública, que são os assistidos. Então, nesse caminho de inovação, estamos estudando o uso dessa ferramenta sempre amparados na ética, na eficiência e sempre com o diálogo com nosso assistido para garantir a segurança, a qualidade e sobretudo o acesso à justiça”, finaliza. (Ulisses Pompeu e Luciana Araújo)

 

Juiz de Marabá fala sobre Zeus, a IA dos magistrados do Pará

 

“Todo desenvolvimento de inteligência artificial no Poder Judiciário é regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que traçou diretrizes para a utilização responsável dessa tecnologia no âmbito do Judiciário nacional”, explica Marcelo Andrei Simão Santos, juiz titular da 2ª Vara Criminal da Comarca de Marabá.

O magistrado, em entrevista ao CORREIO DE CARAJÁS, detalha que o Judiciário de todo o Estado utiliza a ferramenta Zeus, empregada para transcrever e resumir vídeos e áudios. Esse procedimento permite compreender com mais clareza o conteúdo dos depoimentos e das audiências. Com a plataforma, o desenvolvimento e a elaboração de peças judiciais, como decisões e sentenças, são facilitados. Processos judiciais, muitas vezes sigilosos, exigem tratamento com risco zero de vazamentos, e o magistrado avalia que a ferramenta é segura para o trânsito de informações do Judiciário.

Juiz Marcelo Andrei vê que o uso de ferramentas de IA no Poder Judiciário ainda está em fase inicial

Áreas como a catalogação de processos, elaboração de resumos de textos, minutas de despachos e decisões também são beneficiadas com o uso da tecnologia. “Além de muitos outros assuntos referentes ao tratamento de informações processuais e à elaboração de peças e textos em geral”, explica o juiz.

Apesar dos avanços, Marcelo Andrei afirma que o uso de ferramentas de inteligência artificial no Poder Judiciário ainda está em fase inicial, mas reforça a utilidade da tecnologia para facilitar e agilizar a prestação jurisdicional. (Ulisses Pompeu e Luciana Araújo)

 

“É aliada relevante”, revela jovem advogado de Marabá

 

“A inteligência artificial tem sido uma aliada relevante na minha jornada como jovem advogado. Ainda que eu não a utilize de forma intensiva, ela já ocupa um espaço importante no meu dia a dia profissional. Uso principalmente para tarefas que exigem agilidade, como a transcrição de áudios de clientes, organização de ideias para petições e pesquisa preliminar de fundamentos jurídicos. Isso me permite focar com mais profundidade na análise estratégica de cada caso”, detalha Leon Ramirez, um dos mais jovens advogados da Comarca de Marabá.

Leon Ramirez: “Uso principalmente para tarefas que exigem agilidade, como a transcrição de áudios de clientes”

Porém, pondera que a IA não substitui o raciocínio jurídico, nem a interpretação técnica que a advocacia exige, mas funciona como uma ferramenta de apoio eficiente. Com ela, consigo ganhar tempo, ter uma visão mais estruturada dos argumentos e manter uma rotina mais produtiva. “Além disso, em momentos de muito volume ou prazos apertados, ela ajuda a manter a qualidade do trabalho sem sacrificar o cuidado com os detalhes”, exemplifica.

Por fim, diz que vê a tecnologia como uma parceira que, se usada com responsabilidade, pode ajudar muito na vida do advogado, especialmente para quem está começando e precisa lidar com múltiplas funções ao mesmo tempo. “Saber usá-la de forma estratégica é, inclusive, uma vantagem competitiva nos tempos atuais”, celebra.

 

OAB aprova recomendações para uso de IA na prática jurídica

 

O Conselho Federal da OAB aprovou em novembro de 2024 uma série de recomendações para orientar o uso da inteligência artificial generativa na prática jurídica. Para a instituição, a medida tem como objetivo estabelecer diretrizes que promovam a ética e a responsabilidade no emprego dessas tecnologias, visando garantir que o uso da IA na advocacia esteja alinhado aos princípios fundamentais da profissão e às exigências legais.

As práticas de conduta foram elaboradas pelo Observatório Nacional de Cibersegurança, Inteligência Artificial e Proteção de Dados da OAB Nacional. O documento destaca quatro diretrizes principais: Legislação Aplicável, Confidencialidade e Privacidade, Prática Jurídica Ética e Comunicação sobre o Uso de IA Generativa. Essas diretrizes visam resguardar a confidencialidade das informações dos clientes, o uso ético e responsável da IA, além de sugerirem a atualização periódica das práticas recomendadas pelo Observatório.

O presidente da OAB Nacional, Beto Simonetti, elogiou a iniciativa e reconheceu a importância do tema. “Estamos sendo desafiados pelo avanço da IA na advocacia brasileira, e a OAB está atenta e preparada para lidar com essas transformações”, afirmou, ressaltando que a Ordem está em sintonia com os avanços da tecnologia na prática jurídica, porém é preciso responsabilidade e cuidado no uso dessas ferramentas.

 

Tribunais de todo o país já utilizam IA generativa integrada à PDPJ-Br

 

Já está disponível para uso dos tribunais brasileiros a Apoia (Assistente Pessoal Operada por Inteligência Artificial), primeira ferramenta de inteligência artificial (IA) generativa integrada à Plataforma Digital do Poder Judiciário Brasileiro (PDPJ-Br).

A IA generativa é uma tecnologia que permite criar conteúdo de texto, imagens e vídeos a partir de comandos do usuário. No Judiciário, a Apoia auxilia magistradas e magistrados, servidoras e servidores nas seguintes tarefas: criação de relatórios e ementas, revisão de textos jurídicos, geração de sínteses processuais, triagem temática, visualização de acervos e detecção de litigância predatória e ações repetitivas.

Com infraestrutura aberta e colaborativa, a Apoia busca responder aos desafios operacionais enfrentados no dia a dia dos tribunais, como alto volume de processos ou atividades repetitivas. Além disso, é uma alternativa institucional segura diante do uso de ferramentas privadas, sem padronização ou diretrizes comuns.

A ideia por trás dessa solução de IA generativa é promover mais agilidade e precisão na análise e produção de conteúdos jurídicos e peças processuais.