Correio de Carajás

Primeira pessoa negra a ganhar Oscar morreu pobre e teve enterro negado

Hattie McDaniel foi a primeira pessoa negra a levar a estatueta do Oscar para casa e sofreu racismo na própria premiação

Hattie McDaniel foi a primeira pessoa negra ganhar o Oscar e sofreu racismo na própria premiação — Foto: Getty Images

Hattie McDaniel foi a primeira pessoa negra a ganhar um Oscar, em 1940, na 12ª edição da premiação. Ela venceu a categoria de Melhor Atriz Coadjuvante por interpretar Mammy, uma escravizada que trabalhava como empregada no filme E o Vento Levou (1939).

Ela nasceu em 1893, caçula de 13 filhos de um casal de escravizados libertos, que chegou ao Kansas fugindo da extrema pobreza. Foi uma atriz e cantora norte-americana que trabalhou na época em que a lei Jim Crow ainda estava vigente no sul dos Estados Unidos, impondo a segregação dos negros em espaços públicos.

Hattie foi a primeira pessoa negra a ir ao Oscar como convidada e não como empregada. Além disso, ela precisou de uma autorização para comparecer ao evento, pois o local não permitia a entrada de pessoas negras. A atriz não pôde festejar com o restante do elenco, foi colocada em uma mesa no fundo, distante das demais estrelas, e não permitiram que ela participasse de fotos com os colegas de trabalho ao final do evento.

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Usando um vestido turquesa, a artista fez seu discurso:

“Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, membros da indústria cinematográfica e convidados de honra: este é um dos momentos mais felizes de minha vida, e quero agradecer cada um de vocês que me selecionaram a um dos seus prêmios por sua gentileza. Isso me fez sentir muito, muito humilde; e sempre o erguerei como um farol para qualquer coisa que eu possa fazer no futuro. Espero sinceramente ser sempre motivo de orgulho para a minha raça e para a indústria cinematográfica. Meu coração está pleno demais para lhes dizer como me sinto, e posso dizer obrigada e que Deus os abençoe.”

Dos trabalhos domésticos a Hollywood

 

Antes de se tornar atriz, Hattie já estava firme na ideia de quebrar o ciclo de servidão imposto a pessoas negras à época. A veia artística aflorou ainda aos 17 anos, quando foi a única negra a participar de um evento da União Cristã de Temperança Feminina. Na ocasião, ela recitou um poema de sua autoria, o que lhe rendeu uma medalha de ouro.

Foi o estopim para que decidisse ser artista. Então, juntou dois de seus doze irmãos para criar um grupo de Vaudeville, que era um tipo de espetáculo que mesclava comédia, música e até mágicas. O grupo, infelizmente, não resistiu a Grande Depressão dos Estados Unidos, em 1929, a pior crise financeira do país e a morte do irmão Otis, em 1916 — o que levou Hattie de volta a trabalhos domésticos: aceitou um serviço de limpadora de banheiro em um hotel em Milwaukee.

Certa noite, após o fim do expediente, o gerente da hospedagem perguntou se alguém poderia subir no palco reservado a artistas que promoviam shows no local. Hattie se candidatou. “Não voltei a trabalhar nos banheiros. Durante dois anos, protagonizei o espetáculo do lugar”, contou a atriz ao The Hollywood Reporter.

Hattie McDaniel — Foto: Getty Images
Hattie McDaniel — Foto: Getty Images

Dali, seus caminhos a levaram a cantar em rádios e a estrelar em peças de teatro. Foi um longo caminho, entre indas e vindas entre o trabalho doméstico e os palcos, até que começasse a aparecer em filmes. A estimativa é que ela tenha feito cerca de 300 produções cinematográficas, mas viu seu nome aparecer nos créditos de pouquíssimas. O motivo? Sua raça.

Também por causa do racismo, Hattie era chamada apenas para interpretar trabalhadoras domésticas, como no caso de E O Vento Levou. Os papéis não passaram despercebidos aos olhos dos movimentos negros da época, que criticavam o fato da atriz aceitar se submeter a personagens que reforçavam o estereotipo da mulher negra que nasceu para servir pessoas brancas.

Hattie rebateu com afirmações fortes: “O que você quer que eu faça? Interpretar uma garota glamourosa e sentar no colo de Clark Gable? Quando você me pede para não interpretar esses papéis, o que você tem a oferecer em troca?” e “Por que eu deveria reclamar por ganhar setecentos dólares por semana interpretando uma empregada? Se não estivesse fazendo isso, estaria ganhando sete dólares por semana, na verdade sendo uma.”

Hattie McDaniel e o racismo mesmo após a morte

 

Hattie McDaniel morreu de câncer de mama em outubro de 1952, no hospital do Motion Picture House, no Vale de São Francisco, sem ter dinheiro algum. No testamento, ela fez dois pedidos: ser enterrada no Hollywood Forever, cemitério exclusivo para as celebridades importantes da indústria, e que seu Oscar fosse entregue à Universidade Howard.

O dono do cemitério, Jules ‘Jack’ Roth, no entanto se recusou a permitir que uma negra fosse enterrada ali. Por esse motivo, seu corpo foi enterrado no Cemitério Angelus Rosedale, em Los Angeles.

Em 1999, Tyler Cassity, o novo dono do cemitério Hollywood Forever, propôs a família de Hattie que ela fosse enterrada no local, mas, os parentes da atriz recusaram. Foi então construído um memorial no cemitério dedicado a artista.

Sobre sua estatueta do Oscar, até hoje, ninguém sabe o que aconteceu com ela. Alguns dizem que foi jogado no rio Potomac durante as revoltas após o assassinato de Martin Luther King Jr., em 1968. Outra teoria diz que o prêmio foi “arquivado” em um lugar desconhecido.

Se passaram 24 anos até que uma pessoa negra voltasse a ganhar o Oscar. O próximo a levar a estatueta para casa foi Sidney Poitier, em 1964, por “Uma Voz nas Sombras”. Em toda a história do Oscar, só 58 prêmios foram entregues a pessoas negras.

(Fonte:G1/GQ- Bárbara Moura)