Gleice Queli Miranda Ferreira é mãe de três: João, 9 anos; Lucas, 5 anos; e Maria Júlia, de 2. Quando o filho do meio tinha 2 anos veio o diagnóstico, ele está dentro do espectro autista e é nível dois de suporte. Com a descoberta, Gleice teve que mergulhar no desconhecido do já conhecido mundo materno e, com Lucas, reaprender a ser mãe.
No recém criado Dia da Mãe Atípica, em 30 de novembro, o Correio de Carajás mergulha na dualidade da mulher que navega por dois mundos distintos, mas que se entrelaçam no seio familiar, local de acolhimento e fortaleza.
É pelos filhos e por ela mesma que Gleice vivencia um aprendizado novo a cada dia. Seja para mostrar para João e Maria Júlia que as diferenças de Lucas não são uma barreira; seja para ensinar o filho atípico a seguir seu caminho pela vida; seja para provar a si mesma que muito antes – e depois – de ser mãe, ela ainda é a Gleice.
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Correio de Carajás – Como você apresenta a Gleice e o Lucas?
Gleice Queli Miranda Ferreira – Eu sou Gleice Queli, a mãe do Lucas. Como eu gosto de dizer, ele é um garotinho, hoje de 5 anos, que foi diagnosticado com autismo aos 2 anos. O Lucas é um garoto incrível, que já está bem desenvolvido.
Correio – Em que momento a Gleice teve a percepção de que é uma mãe atípica?
Gleice Queli Miranda Ferreira – Quando veio o diagnóstico. Mas de alguma forma eu já sabia, porque percebia algumas coisas desde ele bebezinho. Mas quando eu recebi o laudo foi onde minha ficha caiu e eu passei pelo luto. Toda mãe atípica passa por esse processo difícil, não é nem de aceitação, mas é de ter medo, de saber o que vai enfrentar a partir do diagnóstico. Então, na minha vida, foi nesse momento que eu me descobri mãe atípica.
Correio – Como foi, para você, vivenciar esse processo de descoberta, luto e acolhimento do diagnóstico?
Gleice Queli Miranda Ferreira – Foi difícil na época, principalmente o lado financeiro. Foi há três anos, quando ele tinha dois, e era mais pesado naquela época porque a gente tinha que ir para outro estado (fazer o tratamento). O processo de luto também foi complicado. Eu digo, eu aprendi a ser mãe atípica com as terapeutas, porque é diferente de você ter um filho que não é atípico e aí eu aprendi ali, na terapia, como que eu tinha que conduzir esses dois lados. Até hoje eu aprendo.
Correio – Você tem outros dois filhos, o João de 9 anos e a Maria Júlia de 2, o Lucas é o do meio. Como foi fazer essa transição da maternidade típica para a atípica?
Gleice Queli Miranda Ferreira – O João era o meu contraste. Eu sempre comparava o desenvolvimento dele, que tinha 4 anos, com o do Lucas e era totalmente diferente. Foi ali que eu aprendi a ser mãe de verdade, porque você tem todas aquelas expectativas e elas são quebradas. Eu tive que aprender a ser mais paciente com o tempo, com as limitações dele. É um processo mesmo de aprendizado. O diagnóstico foi a virada de chave dessa transição, porque o jeito que eu criava o João não poderia ser do mesmo jeito que eu iria criar o Lucas. Primeiro que ele não falava, então como eu ia entender as necessidades dele? Eu vivi um desafio e tive que reaprender a ser mãe.
“Houve um tempo em que me esqueci de mim. Vivia em função do Lucas. Ele sempre vai precisar de mim, mas as outras pessoas ao meu redor também. Eu estou buscando esse resgate de mim mesma, porque isso é muito importante, muito. Em primeiro lugar, para você cuidar de alguém, você tem que cuidar de si, senão você não dá conta” – Gleice Queli
Correio – Como que tu visualizou o teu papel de mãe a partir desse momento?
Gleice Queli Miranda Ferreira – Melhorou a minha maternidade inteira, porque aí eu passei a ver até os outros filhos de outra forma. Eu percebi que criança típica também precisa todo esse cuidado, só que é diferente porque ela desenvolve e o autista tem esses atrasos de desenvolvimento, então é uma eterna aprendizagem sobre ser mãe.
Correio – Você, seu esposo e os três filhos formam uma família atípica, por causa do Lucas, como é essa convivência?
Gleice Queli Miranda Ferreira – Ela é boa, principalmente entre os irmãos. Eu faço todo um trabalho de explicar para eles sobre o Lucas, por que eles criam expectativas, principalmente o mais velho, por serem dois meninos. Às vezes o João quer que o Lucas faça algo que ele não faz, aí eu estou o tempo todo tentando ensinar: ‘filho, você vai por esse caminho’, ensinando, na verdade, a lidar com ele. O mais velho participava das terapias no início, nós fizemos esse processo porque ele achava que o irmão vinha se divertir, que a vida do Lucas era mais feliz que a dele porque vinha brincar com a tia, então nós também passamos por isso até para ele aprender a dividir e entender que o irmão não brincava como ele. Já não é fácil viver em família, mas com uma criança atípica é um desafio ainda maior para todos.
Correio – Quais vitórias tu celebras enquanto mãe atípica?
Gleice Queli Miranda Ferreira – O banho sem choro. As pequenas coisas, a gente aprende a gostar das primeiras vezes. As primeiras palavras, a música que consegue cantar, quando eu consigo lavar o cabelo dele, o corte de cabelo, o dia que chega na escola que a professora fala: ‘hoje ele conseguiu concluir a atividade’. É uma emoção muito grande que a gente sente. A mãe atípica passa a ver o pequeno, o nosso troféu é diferente. É a comida que ele aceita, a beterraba que tinha uma cor diferente e ele comeu. Essas conquistas, mesmo do dia a dia, a brincadeira com outra criança, interagiu, brincou de forma funcional. Essas são as pequenas vitórias da família atípica.
Correio – Na tua opinião, de que forma a mãe atípica é vista pela sociedade?
Gleice Queli Miranda Ferreira – Muitas vezes como vítima. Eu já escutei muito: ‘ah, a mãe atípica se vitimiza’. Na verdade, ela se sente só, que ela e o filho estão sozinhos no mundo, e não é assim. A sociedade também acha que somos barraqueiras, somos vistas como aquelas que brigam porque querem atendimento prioritário. Na verdade, a gente está sempre brigando pelos direitos que eles têm. As pessoas não imaginam o quanto é difícil para uma criança autista esperar em uma fila, por exemplo. Então, muitas vezes, é visto assim: ‘ah, ela é a vítima, ela é a barraqueira’. E não é, a gente só quer ser ouvida, queremos, muitas vezes, um abraço e que as pessoas entendam. Às vezes eu acho que a sociedade pensa assim: ‘ai, tadinha, ela tem um autista em casa’, e não é tadinha, é só uma leoa tentando dar conta.
Correio – É possível se dividir entre a Gleice mãe e a Gleice mulher?
Gleice Queli Miranda Ferreira – Hoje é, mas só depois de fazer acompanhamento psicológico, eu estou trabalhando isso durante todos esses anos. Houve um tempo em que esqueci de mim, da saúde, da família. Vivia em função do Lucas. Mesmo cuidando de todos, não era como tinha que ser. E pela primeira vez esse ano eu já fui em um retiro da igreja, fiquei longe dele pela primeira vez. E eu estou dando prioridade para mim, para cuidar de mim, da minha mente, dos meus outros filhos. Ele sempre vai precisar de mim, mas as outras pessoas ao meu redor também. Eu estou buscando esse resgate de mim mesma, porque isso é muito importante, muito. Em primeiro lugar, para você cuidar de alguém, você tem que cuidar de si, se não você não dá conta.
Correio – O que a Gleice de hoje falaria para a Gleice que acabou de receber o diagnóstico?
Gleice Queli Miranda Ferreira – Vai dar certo. Era alguém que recebeu o diagnóstico e achava que não ia dar certo, que não ia conseguir dar conta, mas deu. Quando recebi o diagnóstico do meu filho, estava grávida da terceira filha e eu falaria isso: ‘vai dar certo, você vai conseguir, vocês vão conseguir’. (Luciana Araújo)