Neste 25 de novembro, Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, um dado do Anuário Brasileiro de Segurança Pública ressoa como uma história de terror: em 2023, 258.941 mulheres sofreram algum tipo de violência doméstica.
A narrativa dolorosa – e em diversos casos mortal – protagonizada por incontáveis personagens femininas da vida real, muitas vezes se mistura àquelas registradas na ficção, recebendo até mesmo um toque de romantismo. Para quem está inserido no universo acadêmico, ou literário, não é incomum realizar análises comparando literatura e sociedade e a maneira que uma influencia a outra.
Seja para temas corriqueiros como ensinar para crianças alguma lição, afinal quem nunca ouviu a história da Chapeuzinho Vermelho como um alerta para não conversar com estranhos? Ou em livros como “É assim que acaba”, romance contemporâneo que tem como pano de fundo a violência doméstica.
Leia mais:Foram as estudantes de psicologia Luciana Braga Bressan, 26 anos, e Alice Santos dos Santos, 24 anos, as responsáveis por trazer ao mundo uma pesquisa que se aprofunda no universo da obra de Colleen Hoover, com a vivência de inúmeras mulheres de Marabá (e do mundo), através do trabalho de conclusão de curso com o título “‘É assim que acaba’: diálogos sobre a violência entre literatura e realidades”. Recentemente transformado em artigo, ele foi publicado no 4ª volume da Revista Contemporânea.
REALIDADE ROMANTIZADA
“Nós examinamos a questão de o livro romantizar a figura do agressor. Geralmente ele é uma pessoa bem vista na sociedade, um bom marido e pai. Na obra vamos nos apaixonando por ele junto com a própria protagonista e também vamos quebrando a cara com ela”, elabora Luciana.
A dupla pondera que assim como no livro, na vida real há uma “quebra de expectativas no roteiro”. O relacionamento, que na maioria das vezes inicia belo e carinhoso, depois de algumas páginas se torna sinônimo de agressões físicas, psicológicas, mentais e até patrimoniais.
Na obra, os alertas vermelhos emitidos por Ryle passam despercebidos a Lily, uma vez que ela cresceu em um lar violento. É Alice quem reflete que em muitos relacionamentos reais, quando um homem esmurra uma parede, profere gritos e palavrões, a violência presente nessas ações não é reconhecida por suas companheiras. As atitudes são aceitas como um momento de extravasar a raiva ou “esse é só o jeito dele, não fez por mal”.
A narrativa fictícia descreve as diferentes formas de violência sofridas por Lily e aborda o ciclo que aos poucos vai aprisionando a vítima. Ela busca meios de justificar as atitudes de Ryle, negando a gravidade da situação, assim como sua mãe fazia. Este ponto da ficção corre de forma colateral à realidade, uma vez que é comum que pessoas que cresceram em um ambiente violento reproduzam esse comportamento depois de adultos.
No mundo real, para além das agressões físicas, há casos de mulheres que são proibidas de estudar e trabalhar, são impedidas de ter contato com amigos e família. O agressor as aprisiona dentro do relacionamento, não aceitando que ele acabe.
Na ficção, Lily é independente financeiramente, tem uma postura feminista e consegue romper com o ciclo de violência após o nascimento da filha, quando Ryle aceita o término do casamento. “Mas essa não é a realidade que vemos com frequência. Infelizmente, muitos casos de feminicídio são noticiados porque o homem não aceita o fim da relação”, descreve Luciana.
MICROVIOLÊNCIAS E REDE DE APOIO
Alice relembra que a Lei Maria da Penha, de 2006, caracteriza cinco tipos de violência: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Desde o menor dos atos, como um empurrão, até um estupro, são categorizados como atos de violência doméstica contra a mulher.
“São atitudes que muitas vezes deixamos passar, influenciadas por construções sociais que romantizam o controle masculino como proteção e cuidado. Acabamos interpretando o ciúme e o controle sobre nossas ações, amizades e vestimentas como demonstrações de amor, quando na verdade são sinais de alerta para um comportamento abusivo que pode se agravar no futuro”, pontua Alice.
Ações, palavras e atitudes sutis, às vezes tidas como brincadeiras ou comentários inofensivos, mas que causam danos psicológicos e emocionais são características das microviolências diárias. O agressor é sutil, repetitivo, algumas vezes discriminatório. De tão normalizadas, essas atitudes passam despercebidas pelas vítimas.
É nesse ponto que a rede de apoio se torna uma das principais ferramentas para o resgate da mulher agredida. Em muitos casos são amigos e familiares que percebem o ciclo, ainda que a vítima ainda não tenha tomado consciência dele. Tanto para realizar a denúncia, quando a mulher não é capaz, quanto para recebê-la em um dos momentos mais críticos: o fim da relação.
Existe ainda a rede especializada formada por instituições como o Ministério Público, centros de atendimento especializados, ONGs, Defensoria Pública, Delegacia da Mulher e hospitais. E de psicólogos, como Alice e Luciana.
A dupla é veemente ao afirmar que o atendimento psicológico à mulher vítima de violência doméstica deve ser realizado com empatia, proporcionando um espaço seguro para que ela se sinta à vontade para relatar a violência sofrida. “O profissional precisa ter uma postura acolhedora e, ao mesmo tempo, estar articulado com a rede especializada, garantindo que ela tenha acesso a todos os recursos e suporte necessários para romper o ciclo de violência e reconstruir sua vida”, assegura Luciana.
Apesar disso, Alice comenta que em muitos casos, mesmo pessoas próximas alertando sobre a situação, a mulher não consegue sair do relacionamento abusivo. Isso porque a dinâmica da violência não é tão simples e clara.
O ARTIGO
O artigo de Luciana e Alice contextualiza a problemática da violência doméstica no Brasil, elencando dados alarmantes sobre a perpetuação desse tipo de violência desde a colonização portuguesa até os dias atuais. A dupla também destaca o papel dos movimentos feminista no combate a esse ciclo.
As estudantes discutem as consequências da violência doméstica para a saúde mental das vítimas, incluindo o desenvolvimento de transtornos como depressão e ansiedade, além do risco de suicídio. Também é feita a análise dos motivos que levam as mulheres a não denunciarem seus agressores, como o medo de retaliação, a dependência financeira, falta de suporte familiar e institucional e a culpabilização da vítima.
O artigo enfatiza a importância do acolhimento e acompanhamento psicológico para as vítimas, auxiliando-as na superação dos traumas e no empoderamento para romper o ciclo de violência.
Leia o trabalho completo aqui.
Luciana e Alice destacam que a literatura pode ser um instrumento de denúncia e conscientização sobre a violência contra a mulher, além de oferecer representatividade e encorajamento para as vítimas.
(Luciana Araújo)