O TikTok foi condenado em primeira instância pela Justiça do Trabalho em São Paulo por exploração do trabalho infantil artístico, em desacordo com a legislação. A empresa pode recorrer.
A sentença de 29 de outubro determina que a Byte Dance Brasil, dona do aplicativo, pague uma indenização de R$ 100 mil por danos morais coletivos, a ser revertida para fundos governamentais em defesa da infância. A decisão obriga ainda a empresa a não permitir a atuação dos influenciadores mirins, a menos que haja autorização judicial.
A sentença é resultado de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), em julho deste ano. O processo teve origem a partir de investigações sobre conteúdos como desafios de dança e canto, interpretação de novelas fictícias e tutoriais de maquiagem.
Leia mais:Segundo o MPT, a legislação que exige a autorização judicial prévia deve ser aplicada independente do tema do vídeo, uma vez configurado que a atividade se enquadra na categoria de trabalho infantil artístico.
“As plataformas digitais não são isentas de seguir as leis”, afirma a juíza Solange Aparecida Gallo Bisi, da 31ª Vara do Trabalho de São Paulo. Segundo a magistrada, a companhia tem a obrigação de verificar se a atuação de crianças e adolescentes é precedida de autorização.
Público do Trabalho (MPT), em julho deste ano. “A conduta da ré [ByteDance] de não respeitar regras trabalhistas mínimas afronta a dignidade da pessoa humana”, diz o texto do documento, obtido pela Repórter Brasil.
Procurada, a assessoria de imprensa do TikTok não se manifestou até a publicação desta reportagem. O texto será atualizado se um posicionamento for enviado.
Estatuto da Criança e do Adolescente exige autorização para trabalho artístico
No Brasil, o trabalho artístico infantil só é permitido mediante emissão de alvará judicial, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
O documento deve ser solicitado pela família ou empresa interessada, e precisa estabelecer parâmetros mínimos para a atividade acontecer – como limitação de horas trabalhadas e o tipo de conteúdo produzido.
Essa regra já é consolidada na televisão e no teatro, mas nem sempre é respeitada nas plataformas digitais, onde a fronteira entre trabalho e diversão é nebulosa.
A sentença da 31ª Vara do Trabalho de São Paulo entende que a atuação dos influenciadores mirins nessas plataformas deve ser amparada pela legislação.
“Essa decisão é paradigmática, é um primeiro passo importante”, afirma a procuradora Luísa Carvalho Rodrigues, da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância), uma comissão especial do Ministério Público do Trabalho.
“Há um reconhecimento expresso de que a interação de crianças e adolescentes no mundo digital pode representar uma situação de trabalho e que demanda a garantia de direitos”, acrescenta a procuradora.
Renata Tomaz, professora da Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getulio Vargas (FGV Comunicação Rio), vai na mesma linha. “É uma decisão importante porque mostra que a plataforma não é um simples intermediário. Ela dá as condições materiais, técnicas e sociais para que essa criança exerça essa atividade. Logo, ela também precisa responder pelos efeitos dessa atividade”, avalia.
Plataformas dizem que não é possível fiscalizar
A decisão destaca pontos da argumentação da ByteDance Brasil. De acordo com o documento, a empresa afirma que “não participa da produção ou faz controle editorial dos vídeos para fiscalizar a apresentação de alvará judicial”.
“As plataformas dizem que não têm como fazer essa fiscalização. Elas sabem o dia que o nosso cachorro faz aniversário, mas não têm condição de ver se existe um alvará?”, questiona Moacir Nascimento Júnior, promotor de Justiça da Bahia e membro colaborador da Comissão da Infância, Juventude e Educação do Conselho Nacional do Ministério Público.
Para ele, ao se esquivar da responsabilidade de verificar se existe uma autorização, a empresa contribui para a vulnerabilização das crianças e adolescentes no ambiente digital.
“É uma pena que essa interpretação da legislação brasileira venha a reboque de crianças sofrendo estupro virtual e problemas de saúde mental. Ao se omitir numa questão básica que é pedir um alvará, [a empresa] está contribuindo para que essas crianças sofram danos severos que poderiam ser evitáveis”, afirma Nascimento Júnior.
Linha entre trabalho infantil e diversão é tênue, mas facilmente identificada
“A linha que divide o trabalho da diversão parece tênue, mas é fácil de identificar”, ressalta a juíza Solange Aparecida Gallo Bisi.
Segundo a decisão da 31ª Vara do Trabalho de São Paulo, a existência de trabalho artístico infantil pode ser notada a partir de alguns elementos, como a frequência na publicação dos vídeos, a perspectiva de monetização e a criação de conteúdos para atender a pedidos de terceiros.
“Tem periodicidade? Tem responsabilidade? Quando ela sai, de fato, da brincadeira para um ofício? A Justiça do Trabalho tem elementos que podem ajudar a medir essa virada de chave, quando a criança sai do espontâneo para o compulsório”, complementa Renata Tomaz, da FGV.
TikTok é o aplicativo que mais cresce entre crianças
O TikTok é uma plataforma de vídeos curtos com mais de 1 bilhão de usuários ativos por dia. Na teoria, apenas pessoas maiores de 13 anos poderiam usar o aplicativo, mas isso nem sempre é respeitado.
No Reino Unido, por exemplo, 1,4 milhão de crianças abaixo dessa faixa etária tinham contas ativas no TikTok em 2020, uma violação aos termos de uso. A empresa chegou a ser multada em R$ 80 milhões pela utilização indevida de dados, incluindo informações dos usuários com menos de 13 anos, sem o consentimento dos responsáveis.
No Brasil, 45% das crianças de até 12 anos utilizam o TikTok, de acordo com um levantamento publicado em 2022 pela plataforma de conteúdo Mobile Time e a empresa de pesquisas Opinion Box. O aplicativo foi o campeão de crescimento entre as crianças, com um aumento de 25% em relação ao ano anterior.
Em sua decisão, a juíza Solange Aparecida Gallo Bisi reconhece o limite de idade imposto pela plataforma, mas alerta que, sem fiscalização, essa proteção se torna “inócua”.
(Fonte: UOL)