Correio de Carajás

‘Chips da beleza’: implantes de farmácia são vendidos como ‘tratamento’

Com proibição de venda para fim estético, chips hormonais ganharam apelo como tratamento para doenças, mesmo sem evidência de eficácia.

Posts nas redes sociais prometem eficácia de chips com NADH. — Foto: Reprodução/Redes sociais

A promessa de melhorar a libido e o cansaço convenceu Fernanda Machado, de 39 anos, a implantar um chip hormonal após retirar um dos ovários. Hoje, ela vive um drama: “Dependo de remédios, tenho problema renal e minha vida se tornou um inferno”. Diante da falta de comprovação científica e de centenas de pacientes com complicações, os implantes foram proibidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

➡️ Os dispositivos ficaram famosos como “chips da beleza”, prometendo resultados como ganho de massa magra e emagrecimento. No entanto, após inúmeros relatos de complicação e com médicos proibidos de anunciar o produto para esse fim pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) desde 2023, eles ganharam o selo informal de “tratamento”.

📲 Com uma rápida busca nas redes, é possível encontrar centenas de médicos falando que os implantes são capazes de solucionar endometriose, sintomas da menopausa, disfunção sexual, lipedema, obesidade, depressão, celulite, entre outros problemas, sempre com maior apelo para o público feminino. (Veja abaixo)

Médico faz post que promete tratamento de endometriose com implante hormonal, mas tratamento não tem evidência de que seja eficaz — Foto: Reprodução/Instagram
Médico faz post que promete tratamento de endometriose com implante hormonal, mas tratamento não tem evidência de que seja eficaz — Foto: Reprodução/Instagram

  • 🚨Não existe evidência de que os chips, de fato, funcionem para essas doenças.
  • 🚨Os chips são feitos em farmácias de manipulação e não passam pelo parâmetro da Anvisa como qualquer outro medicamento, o que representa um risco.
  • 🚨O aumento no número de complicações graves recentes relacionadas ao uso de implantes. Segundo a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), na plataforma lançada em agosto para médicos incluírem casos de complicações, até outubro foram mais de 250 casos.

 

Com as alegações, a Anvisa proibiu em 18 de outubro a comercialização e manipulação dos implantes hormonais, englobando todos, não só os conhecidos como “chips da beleza”.

🚨 Um ponto importante: é preciso saber que a agência não vetou a suplementação hormonal. Isso segue permitido, mas com os medicamentos aprovados pela agência. E o implante proibido também não tem relação com aquele que é usado para prevenir a gravidez – ele segue permitido.

Fernanda é parte das estatísticas. Ela recebeu um chip com testosterona e dois com gestrinona, um hormônio androgênico que também era usado na versão do implante da beleza. Ela conta que o médico indicou pelo registro de “baixa testosterona”, argumento popular nas redes, mas que não tem base em evidência científica.

➡️ O médico endocrinologista e diretor da SBEM, Fábio Moura, explica que apesar de ser um diagnóstico popular nas redes sociais, não existe valor de referência para nível de testosterona baixa em mulheres e nem mesmo exames que sejam precisos sobre esses números.

Esse discurso não tem base em ciência. Não existe referência para o mínimo de testosterona em mulher. Além disso, os exames que temos hoje não conseguem fazer uma leitura exata. Esse hormônio oscila de acordo com cada fase do ciclo da mulher, é muito incerto.— Fábio Moura, endocrinologista e diretor da SBEM.

Sem saber disso e das consequências, a administradora permitiu que o médico colocasse o chip. Em três meses, o que era a expectativa de melhora dos sintomas, se tornou um pesadelo.

Eu estou com problemas renais, já tive que parar na emergência. Eu perdi meu cabelo, tenho alterações de humor, dores, problemas de intestino, hipertireoidismo. Procurei outro médico e, para tratar as consequências, estou dependente de vários remédios. Isso está me destruindo.— Fernanda Machado, paciente que colocou implante hormonal.

Ela não é a única. O relatório da SBEM que recebe notificações de médicos que atendem pacientes com reações adversas à suplementação hormonal recebeu entre agosto e outubro 257 relatos. A maioria envolvia casos de hipertensão, infarto, AVC, aumento nos níveis de colesterol e triglicérides.

Fernanda ainda está com o chip porque não é possível retirar. É preciso esperar o prazo de validade do dispositivo, que é de seis meses.

O que diz a ciência sobre os chips?

 

Os chips ou pellets, como são chamados formalmente, são uma via para medicar reconhecida pela ciência e até com modelo aprovado pela Anvisa, como é o caso do implante que atua como anticoncepcional, por exemplo.

➡️ E você pode se perguntar: se o chip é reconhecido, por que então foram suspensos? Porque o problema é que não há pesquisa sobre seu uso com esses hormônios que eles vêm sendo anunciados e nem para o tratamento dessas doenças.

Por exemplo, quando um medicamento chega na prateleira da farmácia, antes disso, ele passou por várias fases de teste, que vão de análises em laboratório até humanos. Isso para saber se são eficazes, se as doses são seguras e quais os efeitos colaterais. E, depois, só podem ser usados se forem aprovados pela agência reguladora, a Anvisa.

➡️ No caso do chip de gestrinona, por exemplo, um dos mais populares e que vem sendo anunciado como tratamento para endometriose, não há, pelo menos por enquanto, pesquisa que mostre que ele é mesmo eficaz no tratamento da doença. Consequentemente, não dá para saber os efeitos colaterais, se existe contraindicação e até dose segura.

🚨 Para além disso, a Federação Brasileira de Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) já havia publicado uma nota em 2021 falando que não era recomendado para endometriose e que não há qualquer evidência de que seja um tratamento.

Como médicos, somos os mais interessados em ter mais soluções para o paciente. No entanto, não dá para brincar com a vida da pessoa. Isso só está acontecendo porque há um mercado e muitos interessados, mas a saúde é que precisa prevalecer. — Marcelo Steiner, médico ginecologista e membro da Febrasgo.

➡️ Os chips que vinham sendo aplicados são, na verdade, feitos em farmácia de manipulação. O médico é quem determina a medida a ser implantada na paciente. Antes de ser aplicado, ele não é submetido a nenhum processo de checagem por qualquer órgão. A Anvisa fiscaliza as farmácias, mas não os produtos feitos por elas.

Pesquisa feita por médico dono de empresa de implantes hormonais — Foto: Reprodução
Pesquisa feita por médico dono de empresa de implantes hormonais — Foto: Reprodução

➡️ Depois da proibição, um artigo científico que cita baixas complicações na aplicação de um milhão de implantes hormonais passou a ser compartilhado nas redes. g1 leu o artigo e há alguns pontos que é preciso levar em consideração:

  • O artigo é do ginecologista americano Gary Donovitz, que é dono da BioTE Medical, uma empresa que faz implantes hormonais. A empresa é de capital aberto e, segundo dados da Nasdaq, tem valor de mercado de US$ 281 milhões. Inclusive, os dados da pesquisa são do banco de dados da empresa. O próprio médico cita no artigo o ponto como conflito de interesse.
  • O título cita um milhão de aplicações, mas foram pouco mais de 300 mil pacientes. Ou seja, a amostra de pacientes mesmo é menor.
  • No artigo, ele chega a citar que a quantidade de hormônio aplicada foi criada pelo método da empresa. Um sinal de que não há mesmo um parâmetro validado por pesquisa.
  • No levantamento, ele diz que mais de 40% dos pacientes desiste do tratamento depois da primeira implantação do chip, mas que “motivos específicos para altos níveis de descontinuação após a inserção inicial de pellets não foram analisados”.
  • No artigo, ele cita que o resultado mostra “indiretamente, a eficácia da terapia de pellets”. Mas o artigo só avalia as complicações, não se os pacientes tiveram resultado.

A nova moda dos chips de NADH e o NAD+

 

Para além dos chips com hormônios como testosterona e gestrinona, eles começaram a se popularizar com outras substâncias como o NADH e o NAD+, que estão no nosso corpo e atuam no metabolismo energético e no funcionamento das células.

Ao buscar o termo nas redes sociais, há uma série de vídeos sobre o implante com a substância com a promessa de melhorar desempenho, combater o cansaço, promover o rejuvenescimento e até como tratamento para doenças autoimunes.

➡️ Em julho deste ano, um estudo da USP levantou o alerta sobre o uso do NAD+ com uma pesquisa que descobriu o risco de efeito tóxico e a necessidade de mais estudos antes que a substância fosse implantada em pessoas.

“Os achados do nosso estudo também podem servir como recomendação de cuidado para estudos clínicos com altas doses de nicotinamida ribosídeo, que podem resultar em efeitos adversos principalmente em pessoas que já sofram de alguma condição que favoreça o estresse energético, como diabetes, câncer, intoxicações com outras substâncias, e síndromes respiratórias, citando alguns exemplos”.

 

O endocrinologista e membro da SBEM, Fábio Moura, ainda pontua que são precisos testes para afirmar que é possível sintetizar NADH de forma que ao ser implantada no chip e liberada no corpo, ela segue essa mesma substância.

Não temos ainda evidência que mostre que foi possível sintetizar essa substância em laboratório de forma que, colocada em um chip, injetada no corpo e liberada ela continua nesse formato. Falar que faz implante disso é uma alegação absurda em troca de muito dinheiro.
— Fábio Moura, endocrinologista e membro da SBEM.

Ele ainda lembra que a moda foi a mesma usada no movimento #ocitocinesse, quando médicos anunciavam chips com ocitocina, mas que chegaram a levar pacientes para a UTI.

O que vai acontecer agora?

 

Com a decisão da Anvisa, os profissionais não podem mais fazer o implante e nem as farmácias produzirem. A suspensão é por tempo indeterminado e segundo a agência “somente produtos que tenham sua avaliação de segurança e eficácia podem ser manipulados. Essa avaliação é feita quando alguma empresa solicita o registo de um medicamento e apresenta os dados clínicos”.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) disse que o médico que seguir fazendo as aplicações ou propaganda desses equipamentos estão infringindo as regras do conselho e podem responder por isso, além de estarem descumprindo a lei e poderem responder criminalmente.

Os implantes proibidos não incluem os usados para prevenir a gravidez, esses podem ser implantados e estão liberados. Além disso, terapias hormonais feitas com medicamentos aprovados pela agência podem continuar. Ou seja, pacientes que têm deficiência hormonal vão continuar sendo atendidos.

(Fonte:G1)