Correio de Carajás

Dona Graça conjuga o verbo criar no lugar de adotar

“Meu destino era ajudar quem precisasse. Para mim era assim, se eu fizesse o bem tava bom demais”, diz a mulher que tem amor pelos filhos que não pariu

Com um diagnóstico de útero infantil, Dona Graça nunca pariu nenhum filho, mas é mãe de (pelo menos) seis/ Fotos: Evangelista Rocha    

 Entre os mais antigos, o verbo “adotar” raramente é utilizado, quem assume esse emprego é o simples e significativo “criar”. Quem cria também alimenta, sustenta, educa e forma os filhos que nasceram do ventre de outras mães. É assim com Maria das Graças de Araújo Figueredo, de 82 anos.

Mãe, tia, madrinha, vó, são os vocativos atribuídos pelos diversos filhos que ela não pariu, mas criou.

“Eu fui na Imperatriz (MA) um tempo, aí eu consultei com um médico que falou que eu tinha um útero infantil, não podia ter filho. O doutor Gilberto, aqui em Marabá, falou para mim que se eu quisesse ele fazia o tratamento. E eu disse que não, não queria mais não. Já tinha criado muitos, aí eu não quis”, relembra sobre o diagnóstico.

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Mas a impossibilidade de gerar filhos em seu ventre não a impediu de cuidar daqueles que a vida colocou em seu caminho. Sentada em uma cadeira em um dos seus lugares preferidos do mundo, uma casa simples na Vila São José, Dona Graça recorda como foi criar os filhos.

O primeiro de todos foi aquele que ela chama de “Dedé”, seu sobrinho. Ele chegou à família após a morte do pai. Um tempo depois, Dedé seguiu agarrado à saia de Dona Graça quando ela casou e foi viver com o marido, Inácio da Conceição Figueredo. O menino cresceu, virou adulto e aos 22 anos partiu daquele lar.

Embora a distância geográfica tenha afastado a convivência física, porque ele morava em São Domingos, no Maranhão, e o casal em Marabá, o amor por Dedé nunca fugiu do coração da mãe que o criou. Ele morreu em fevereiro e os olhos de Dona Graça ficam rasos de lágrimas e amor ao relembrar a perda dolorida. “Ele é o amor da minha vida e sempre vai ser”, diz, repleta de saudade.

Filha de coração, sobrinha de sangue

A memória da senhora de 82 anos talvez não faça jus à cronologia de sua vida. Relembrar, em sequência, a ordem que todos os filhos de criação chegaram ao seu batente não é tarefa fácil. O que Maria das Graças sabe, com absoluta certeza, é que a sobrinha Maria Gorete de Araújo Figueredo é sua filha.

“Pra mim ela é minha filha, eu nem me lembro que ela já teve outra mãe. É um sentimento de mãe e filha, Deus me livre, eu amo ela demais. Não sei nem se algum dia eu me lembrei que ela não é minha filha, pra mim é o amor da minha vida”, destaca.

A mulher, que hoje tem 59 anos, era uma pequena criança de três quando apanhou do padrasto. Assustada, a menina se escondia debaixo da cama com medo, sentimento suficiente para despertar nela o desejo de morar em outro lugar.

Foi a avó de Gorete quem pediu para Dona Graça pegar a menina e levar dali, mesmo sob os protestos da mãe biológica da garota, que temia perder a filha. Naquele momento, cheio de angústia, foi garantido que a criança voltaria para casa depois de um mês, tempo o bastante para se recuperar do trauma.

Passado o período acordado, ela não aceitou se separar da tia.

“Com um mês eu fui deixar ela. Quando eu cheguei lá, a Gorete não quis dar um beijo na mãe dela e nem quis ficar. Aí ela ficou com a gente e fomos embora para Imperatriz, de lá a gente veio pra Marabá”.

A partir daquele momento, a vida da menina foi amarrada com a sua para sempre. Durante anos a família mudou de uma roça para a outra, até que em 1977 chegou a Marabá, lugar onde moram até hoje.

 

“Eu não sou tua mãe, mas ele é teu pai”

Muitas famílias guardam seus segredos a sete chaves. Mas não é o caso de Dona Graça, que conta nostálgica sobre o dia em que descobriu que o filho de criação, Antônio Carlos Faustino Figueredo, é filho biológico de seu marido, Inácio da Conceição Figueredo.

A história é contada para a reportagem do CORREIO sem nenhum vestígio de mágoa ou rancor, pois o amor pelo filho sobrepõe qualquer sentimento negativo que poderia brotar no coração de Dona Graça.

Divertida, ela relembra que a mãe biológica de Carlos era sua vizinha e morava com um homem. Um dia a mulher estava chorando na calçada de casa, o marido a havia largado grávida. Dona Graça prontamente se dispôs a acolhê-la, contrariando a vontade de “Seu Inácio”, que não queria a “buchuda” em sua casa.

Pouco tempo depois o menino nasceu e a semelhança com o pai foi ficando cada dia mais evidente.

“O povo perguntava se era filho dele, até que juntou a Gorete, o Alcenor e a Socorro em volta dele e pediram pra ele falar a verdade e aí ele disse que era filho dele mesmo”, conta.

Naquela época, o menino já tinha 7 anos e o amor de Dona Graça por ele já estava enraizado.

“Ele pode ser filho de quem for, eu não tô me importando não. Quando eu descobri, eu não senti nadinha de ruim. O meu amor tava nele e aí o resto que se danasse, eu já tava com ele. Ele já tava com 7 anos, que é que eu podia fazer? Criar raiva da criança que não tinha culpa de nada? Não”.

Hoje, aos 49 anos, Carlos e a família moram na casa que um dia foi construída por Inácio, que é pedreiro aposentado. Ao lado dele, parede com parede, está o lar de Gorete. Os filhos que Dona Graça criou e, de alguma maneira, ainda cria.

A história de Graça e Inácio é repleta de dificuldades, superação e amor pelos filhos
O derradeiro filho do coração

No rol de crianças e jovens que foram colocados sob os cuidados de Dona Graça estão os irmãos Alcione e Alcenor Almeida da Silva. Eles foram morar com o casal para que pudessem estudar e só saíram de casa casados.

“Eu nem sabia como que ia dar de comer para esse tanto de gente, mas Deus sempre deu um jeito. Aí eu levei lá para casa e todos os dois estudaram, se formaram e casaram”.

A sina de criar os filhos gerados por outras mulheres continuou até 1994, quando nasceu o caçula, Marcelo Rocha Silva, filho de Alcenor. Mais um dos amores da vida de Dona Graça.

A mãe biológica é de Parauapebas e conheceu Alcenor quando ele trabalhava na Serra dos Carajás. A gravidez permaneceu em segredo durante um tempo, até que o rapaz contou para Gorete.

“Ele não sabia me dizer porque eu vivia chamando a atenção dele por ser muito mulherengo. Quando descobri, disse que ele ia assumir e criar”, revive. E ela foi além, garantiu a Alcenor que criaria Marcelo junto com ele, porque a mãe do menino não tinha condições de fazer isso naquele momento.

Ela veio para Marabá para parir e ficou por quatro meses, período em que amamentou. Depois foi embora, o menino ficou e foi criado pela mulher que a reconheceu como avó, pelo pai e pelo avô, Inácio. O retrato de uma família fortalecida pelos laços do amor.

  

Amor, presença e conexão na terceira idade do casal

“Tem hora que eu penso assim, ‘eu não sei por que eu amo tanto eles’. Do jeitinho que eu gosto de um, gosto dos outros. Para mim todos são os meus amores. Eu amo todos, todos”, enfatiza Maria das Graças de Araújo Figueredo.

Atualmente, ela e o marido moram em uma casa simples na Vila São José, lugar onde plantam feijão, milho, abóbora, limão e criam suas galinhas. Espaço onde se reconecta com as origens de quem foi criada em uma fazenda no interior do Rio Grande do Norte.

Dona Graça e o “Velho”, como ela diz, moram sozinhos mas a presença constante dos filhos e netos faz a distância ser apenas um número. Basta pedir que seus desejos e necessidades logo sejam atendidos por um deles. E, às vezes, nem é preciso falar nada, eles chegam até lá de surpresa.

“Quando eu dou fé, chega um, aí com um pouco chega outro, parece que chega tudo de uma vez. Para mim é o momento mais feliz, quando tá todo mundo junto”, celebra.

Mãe não só de criação, mas de fato e de direito – se não legal, mas divino – Dona Graça diz que o amor que tem pelos filhos é igual ao de “uma mãe de verdade”. O que lhe encabula, na verdade, é a reciprocidade do sentimento.

“Eu sinto que eles têm amor por mim e como que eu não vou amar eles? Se eu peguei uns porque sofria lá fora, peguei outros porque não tinha quem criasse e eu criei. Ave Maria, eu amo demais cada um deles”.

 

(Luciana Araújo)