Foi totalmente ao acaso, durante uma consulta com um médico especialista em reprodução, que a dona de casa Izabel Rodrigues Monteiro da Silva, hoje com 70 anos, foi surpreendida com o diagnóstico de síndrome de Down. À época, ela tinha 35 anos e estava casada havia oito anos.
Queria muito ser mãe e, diante da dificuldade de conseguir engravidar, com a ajuda de um dos irmãos procurou um especialista para investigar sua possível infertilidade, sem nunca ter suspeitado da alteração genética causada por uma divisão celular atípica, que resulta na trissomia do cromossomo 21.
Ao ser avaliada, Izabel ouviu do médico que não poderia ser mãe porque tinha “mongolismo” – um termo pejorativo usado há muitos anos para falar sobre alguém com síndrome de Down.
Leia mais:De fato, há poucos registros de casos de mulheres com Down que se tornam mães (a diminuição da fertilidade é uma das consequências da síndrome, principalmente em relação aos homens), mas Izabel contrariou as evidências científicas e, menos de um ano depois da consulta, se tornou mãe de Cristinna, uma menina sem Down, e hoje é avó de três crianças.
A dona de casa cresceu e viveu boa parte da vida sem o diagnóstico. Ela conta que isso aconteceu provavelmente por viver na zona rural de Morrinhos, no interior de Goiás, e ser a caçula de 19 filhos.
“Ela morava na roça e era a caçula de uma família gigantesca. As dificuldades comuns em pessoas com a síndrome, como dificuldade para começar a andar ou a falar, eram atribuídas ao fato de ela ser a criança mais nova e ser muito mimada. Diziam que ela demorou a andar porque toda hora estava no colo de alguém. Demorou a falar porque alguém sempre respondia por ela”, conta a administradora de empresas Cristinna Maria Cândida da Silva, 33 anos, filha de Izabel.
Segundo Cristinna, outras características comuns em crianças com a síndrome, como rosto mais arredondado, olhos mais puxadinhos, mãos pequenas e deficiência intelectual, nunca foram notadas pelos familiares e passaram despercebidas, justamente porque eram pessoas muito simples.
“Eles viviam na roça, praticamente sem acesso à saúde. Minha mãe é baixinha, então as mãos dela eram pequenas e nunca chamaram a atenção. Ela chegou a frequentar aulas do grupo escolar rural, mas, como não conseguia acompanhar a turma, parou de estudar. Minha avó ensinou minha mãe a se tornar uma boa dona de casa. Hoje ela conhece as vogais e sabe escrever o meu nome e o dela”, conta a filha.
Como nunca desconfiou ter síndrome de Down, Izabel cresceu dentro daquela comunidade rural, recebendo os estímulos caseiros.
“Quando ela não conseguia fazer alguma coisa, minha avó insistia e ensinava até ela aprender”, conta a filha da dona de casa. À medida que foi ficando mais velha, a deficiência intelectual passou a ficar mais evidente. “As pessoas começaram a perceber que ela era diferente e começaram os comentários de que ela não era muito certa da cabeça. Às vezes, ela sai um pouco do ar, não se expressa de forma muito clara, mas nada disso a impediu de construir uma família”, diz Cristinna.
A filha conta que Izabel teve outros relacionamentos, mas se apaixonou mesmo pelo seu José, que por acaso também é parte daquela família gigante (ele é primo de Izabel). Os dois se casaram quando ela tinha 26 anos e logo se mudaram para a cidade – ele foi trabalhar na prefeitura e ela ficou cuidando da casa. O diagnóstico de síndrome de Down veio oito anos depois, confirmado pelo exame clínico e alguns anos depois pelo exame de cariótipo (um exame que avalia os cromossomos das pessoas).
A gravidez de Izabel transcorreu dentro da normalidade da época – com pouquíssimas consultas de pré-natal e sem ultrassonografia –, mas no final ela teve pré-eclâmpsia, o que fez o parto ser antecipado. Cristinna nasceu em abril de 1990 e cresceu sob os cuidados da mãe, mesmo com as limitações que ela tinha. “Para mim, minha mãe sempre foi igual às mães de todo mundo. Não tenho recordação nenhuma de que algo na minha infância tenha sido diferente”, conta.
Quando Cristinna estava um pouco mais velha, durante uma aula de ciências no ensino fundamental, a professora explicava sobre a síndrome de Down. Cristinna levantou a mão em sala e disse: “Minha mãe tem essa síndrome”. Ela foi desacreditada pela professora, que falou que não era possível. “Fiquei incomodada e fui pesquisar mais a respeito. Vi que a expectativa de vida das pessoas com Down era de cerca de 35 anos e a mamãe estava com mais de 40”, conta.
Longevidade com a condição
Estudos internacionais apontam que, nos últimos 40 anos, a expectativa de vida de pessoas com Down aumentou consideravelmente. Na década de 1920, girava em torno de nove anos. Na década de 1980, aumentou para entre 25 e 30 anos. Hoje em dia está entre 60 e 65 anos. As pessoas com Down estão cada vez mais longevas e se tornando idosas. Para comparação, a expectativa de vida ao nascer da população geral é de 75,5 anos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“É bastante raro pessoas com Down terem filhos e netos. Isso nem sempre vai acontecer. Mas não é mais tão raro vermos alguém com Down chegar aos 60 anos. Um dos grandes avanços para o aumento da longevidade desses pacientes, sem dúvida, foi o aperfeiçoamento das cirurgias cardíacas. Muitas crianças nasciam com alterações cardíacas graves e morriam muito cedo, mas com a tecnologia essas alterações são corrigidas mais facilmente e essas crianças vivem mais”, disse o geriatra Marcelo Altona, que coordena o Grupo Médico Assistencial de Deficiência Intelectual, do Hospital Israelita Albert Einstein.
O médico reforça que outros avanços da medicina e da sociedade como um todo, como desenvolvimento de antibióticos, surgimento de vacinas, acesso à informação e inclusão social, também são fatores essenciais para que pessoas com Down se tornem cada vez mais independentes e alcancem a velhice.
“É importante explicar, no entanto, que a alteração genética da síndrome de Down favorece o envelhecimento precoce dessas pessoas. A definição de idoso é uma convenção social, e não médica, que foi criada para a organização da estrutura social. Não existe uma idade na qual possamos afirmar que uma pessoa com Down se tornou idosa, como acontece com a população geral (que é de 60 anos). O que costumamos ver é que, normalmente, essas pessoas começam a apresentar os sinais de envelhecimento mais precocemente, cerca de 20 anos antes”, disse.
O geriatra do Einstein destacou ainda que as pessoas com Down vivenciam as mesmas doenças crônicas do envelhecimento que a população em geral – com a diferença de que pessoas com Down podem desenvolver Alzheimer mais precocemente, numa incidência maior do que entre a população sem síndrome de Down. “Mas isso não é para ser o fim do mundo. O Alzheimer acomete cerca de 30% da população geral aos 85 anos. O nosso olhar, como médico, é ficar atento a partir dos 40 anos para o envelhecimento cognitivo e a possibilidade de doença de Alzheimer, mas continuar estimulando a autonomia e mantendo a vida dessas pessoas normalmente”, disse.
Dia Mundial da Síndrome de Down
Não existem estatísticas oficiais sobre o número de brasileiros com síndrome de Down. O que se sabe é que a síndrome é a ocorrência genética mais comum que existe e acontece em cerca de 1 a cada 700 nascimentos. Segundo o Ministério da Saúde, foram registrados 1.978 nascimentos de crianças com Down em 2021 no Brasil.
O dia 21 de março é marcado pelo Dia Mundial da Síndrome de Down – uma data em que são destacadas a importância de conscientização da população sobre a síndrome, a inclusão e a busca pelas mesmas oportunidades educacionais e sociais para todos. Neste ano, o tema da campanha é “Fim dos estereótipos”.
“As pessoas com Down vivem no meio de estereótipos a vida toda. No folder da campanha, vários jovens relatam situações que passam no dia a dia em que suas capacidades são questionadas”, diz a pediatra Ana Cláudia Brandão, do Centro de Especialidades Pediátricas do Hospital Israelita Albert Einstein e coordenadora do Grupo Médico Assistencial de Deficiência Intelectual do hospital.
Outra questão muito importante, ressalta a médica, é acabar com a infantilização de pessoas com Down, especialmente no sistema de saúde.
“Muitas vezes, o profissional de saúde se dirige ao acompanhante e não à pessoa com Down. Isso porque ainda existe o mito de que eles são ‘eternas crianças’. Confundem muito a questão da deficiência intelectual com a impossibilidade de essas pessoas terem comportamentos e atividades compatíveis com sua idade cronológica. O imaginário das pessoas é que as pessoas com Down serão sempre dependentes de alguém e com comportamentos infantis, e isso não é uma verdade”, diz a médica. “A infantilização e a superproteção são muito comuns, inclusive pelas próprias famílias”, ressalta.
A pediatra afirma ainda que cada vez mais as pessoas com Down estão conquistando sua autonomia e independência, indo para a faculdade e para o mercado de trabalho. “A gente sabe que não vai ser tudo igual, mas é possível que essas pessoas conquistem a independência com a adaptação dos conteúdos, do currículo. A acessibilidade precisa acontecer em todos os ambientes. E esse é um dos fatores responsáveis pelo aumento da expectativa de vida das pessoas com síndrome de Down.”
Apesar de a dona de casa não ter tido a oportunidade de estudar e se inserir no mercado de trabalho, ela se tornou uma mulher independente, que cuidou da casa, da filha e dos netos. Cristinna conta que a maior barreira que a mãe enfrenta é o descrédito em relação ao que ela é capaz de fazer e a curiosidade das pessoas em torno dela.
“Quem cuida da casa dela? Ela. Quem cuidou de mim? Ela. Quem me ajuda a cuidar dos meus filhos? Ela. Não estou romantizando a síndrome de Down. Minha mãe tem problemas e comorbidades. Mas, antes de ela ter Down, ela é uma pessoa que também precisa ser amada, compreendida e respeitada. Na minha opinião, a chave da independência dela é nunca ninguém ter dito que ela não poderia fazer alguma coisa”, diz Cristinna. Afinal, quantos estereótipos foram quebrados com a história de vida de Izabel?
(Fonte:CNN Brasil/Fernanda Bassette)