“Violência é violência em qualquer circunstância e lugar, mas esse protocolo foi preparado para lugares de diversões e casas noturnas, e é possível que existam outros projetos que realmente abordem o enfrentamento ao assédio ou constrangimento e a violência em outros ambientes.”
A lei define como constrangimento “qualquer insistência, física ou verbal, sofrida pela mulher depois de manifestada a sua discordância com a interação”.
E define violência, nesse contexto, como “uso da força que tenha como resultado lesão, morte ou dano, entre outros, conforme legislação penal em vigor”.
Sucasas também critica a definição, segundo ela, pela “ideia de que o assédio só acontece depois do ‘não’ expresso”.
“Nem sempre o ‘não’ é expresso. Ele pode ser silencioso. O dissentimento não precisa ser expresso, ele pode ser presumido”, diz, citando como exemplo caso de 2017 no qual um homem ejaculou em uma mulher em ônibus na Avenida Paulista.
“Até ela perceber que ele ejaculou, ficou em silêncio. Isso é um problema, entender que o constrangimento só acontece depois do ‘não’ expresso.”
A lei federal prevê, entre os direitos das mulheres:
- Ser prontamente protegida pela equipe do estabelecimento a fim de que possa relatar o constrangimento ou a violência sofridos;
- Ser informada sobre os seus direitos;
- Ser imediatamente afastada e protegida do agressor;
- Ter respeitadas suas decisões em relação às medidas de apoio previstas na lei;
- Ter as providências previstas na lei cumpridas com celeridade;
- Ser acompanhada por pessoa de sua escolha;
- Definir se sofreu constrangimento ou violência, para os efeitos das medidas previstas na lei;
- Ser acompanhada até seu transporte, caso decida deixar o local.
Para que essas medidas sejam implantadas, a lei prevê, entre os deveres dos estabelecimentos, ter pelo menos uma pessoa na equipe qualificada para atender ao protocolo “Não é Não”, além de manter, em local visível, informação sobre a forma de acionar o protocolo e contato da Polícia Militar e da Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180).
Os estabelecimentos devem se certificar, com a vítima, em possível situação de constrangimento, se há necessidade de assistência.
Se houver indícios de violência, os estabelecimentos devem, segundo a lei:
- Proteger a mulher;
- Afastar a vítima do agressor, inclusive do seu alcance visual — e ela deve ter o acompanhamento de pessoa de sua escolha;
- Colaborar para a identificação das possíveis testemunhas do fato;
- Solicitar o comparecimento da Polícia Militar ou do agente público competente;
- Isolar o local específico onde existam vestígios da violência, até a chegada da Polícia Militar ou do agente público competente.
Se houver câmeras de segurança no local, o estabelecimento deve garantir o acesso às imagens à Polícia Civil, à perícia oficial e aos diretamente envolvidos, além de preservar as imagens relacionadas ao ocorrido por pelo menos 30 dias.
Os estabelecimentos podem também, segundo a lei, retirar o agressor do estabelecimento e impedir o seu regresso até o término das atividades, nos casos de constrangimento.
Também podem criar um código próprio, divulgado nos banheiros femininos, para que as mulheres possam alertar os funcionários sobre a necessidade de ajuda, a fim de que eles tomem as providências necessárias.
A lei federal prevê advertência como penalidade para o estabelecimento que descumprir o protocolo “Não é Não”. E determina que cabe ao poder público promover campanhas educativas e formação periódica para conscientização e implementação do protocolo para empreendedores e trabalhadores dos estabelecimentos.
A expectativa é que a regulamentação da lei seja feita, nos próximos meses, por decretos pela Presidência da República.
Sobre a existência de leis estaduais e municipais sobre o mesmo tema, Sucasas diz que “prevalece a mais favorável à vítima”.
‘Amigo do dono’
Bem antes do caso Daniel Alves e de seus desdobramentos, o treinamento de equipes em bares e eventos para prevenção ao assédio sexual já era o foco do trabalho de Ana Addobbati, fundadora e diretora da Livre de Assédio, empresa que trabalha com esse tipo de capacitação.
Addobbati, que acumula experiência nesse tipo de treinamento desde 2017, elogia as novas iniciativas, mas destaca que o desafio, agora, é tirar do papel. “Lei boa é lei que pega.”
Ela cita a importância de levar em conta as jornadas de trabalho dos profissionais do setor e as metodologias que serão usadas em cursos de capacitação — para não ser um curso “para inglês ver”, diz.
“É uma metodologia ativa? Há espaço para fazer perguntas? É adulto com letramento formal baixo. As pessoas vão aprender interagindo, perguntando.”
Outro ponto central, na avaliação de Addobbati, é que os gestores não devem deixar tudo na mão de um funcionário só.
“O que mais aprendi quando comecei a desenhar meu negócio era conversar com garçom, com seguranças, que diziam: ‘a gente sabe que é assédio, mas tenho muito medo de agir porque o cara pode ser amigo do dono, e homem geralmente consome mais'”, diz.
“Em Barcelona, o que ficou muito claro é como foi ágil a operação. Não é um trabalho de um homem só, que fez um treinamento online. É ter ali uma liderança, uma organização para que isso funcione.”
Sadalla, que é mestre em Políticas Públicas pela Universidade de Oxford (Reino Unido), também destaca que o desafio, agora, é que a lei se torne prática.
“Aí vem a responsabilidade tanto do governo federal e, em especial, dos governos locais para desenvolver protocolos para seus territórios — e que dialoguem com os serviços locais, para além de polícia militar e disque 180”, diz.
“Ou vamos repetir o que acontece com várias leis no país — a lei existe, mas não há orientação prática para implementação.”
Sadalla conta sobre um curso que deu para garçons de festas, num contexto em que ainda não havia protocolo, sobre situações de prevenção à violência sexual.
“Eles ficaram bem surpresos que poderiam ajudar com coisas que parecem bobas”.
Ela dá um exemplo de um bar no qual uma vítima conversa com um homem no balcão, ele fala coisas impróprias e o garçom — que deve estar treinado para isso — vê que ela não consegue responder, embriagada.
“Ele pode: 1) estar treinado para perguntar se ela precisa de ajuda; 2) digamos que o garçom não faça nada, essa mulher vai pro banheiro com o cara e sai de lá com uma aparência muito ruim, e chorando. Ela pede ajuda pra alguém no bar. Esse garçom que ouviu o papo antes e viu ela embriagada pode e deve testemunhar. Mas ele precisa ter o treinamento para estar previamente atento a esse tipo de coisa”, diz.
Carnaval: 7 em 10 brasileiras temem sofrer assédio
A violência contra a mulher fora do ambiente doméstico recebe ainda mais destaque no contexto do Carnaval.
Em pesquisa divulga nas vésperas do Carnaval pelo Instituto Locomotiva e QuestionPro, mais de sete em cada dez brasileiras disseram que temem sofrer assédio no carnaval.
O índice de preocupação era ainda maior para mulheres negras: 75%, comparado a 70% para mulheres brancas.
“A diferença entre a violência contra a mulher que acontece dentro de casa e a violência contra mulher que acontece no carnaval, ou em um evento que tem milhares de pessoas, é que em um você identifica o autor e no outro é difícil de identificar. É praticado, muitas vezes, pelo desconhecido, e aí vem toda a necessidade de colaboração das testemunhas, dos funcionários”, diz Sucasas.
A mesma pesquisa mostrou que metade das entrevistadas disseram que já passaram por situações de assédio no carnaval (52% das mulheres negras e 48% das mulheres brancas).
Sucasas, que comemora as regras de proteção à mulher, lembra que a necessidade dessas leis tem um motivo ruim: “Quando a gente necessita de proteção, é porque temos aqueles que violam as leis, porque ainda persistem na manutenção de estereótipos que colocam a mulher no lugar de objetificação, de desrespeito, de naturalização de práticas que são confundidas com paquera ou com abordagens consentidas quando, na verdade, são violações”.
Isso ocorre, diz ela, “devido ao machismo estrutural” — e por isso considera tão importante que as medidas venham com ações de conscientização e educacionais.
A pesquisa do Instituto Locomotiva mostrou que quase todas as entrevistadas (97%) consideram importante a realização de campanhas de combate ao assédio durante o carnaval.
E, considerando todos os entrevistados, inclusive homens, a pesquisa aponta que 86% dos brasileiros concordam que o assédio existe no carnaval e é responsabilidade de todos combater essas práticas. Entre as mulheres, o índice é de 89%.
“A gente tem que ensinar a pessoa que tem que ouvir uma mulher, porque elas não são ouvidas. A gente tem que ensinar que as mulheres têm que ser atendidas num lugar seguro, de preferência acompanhada de alguém de sua confiança, porque senão a gente ainda tem que desconfiar de que ela também possa ser vítima de abuso sexual ou de desconfiança por parte daquela pessoa que vai atendê-la”, diz Sucasas.
“O maior desafio é a cultura do estupro, que coloca em xeque a moral sexual da mulher, ainda arraigada naquela compreensão de que existem as mulheres honestas — ainda que seja uma palavra antiga e excluída no nosso código penal —, (…) e aquelas que estão pedindo para serem estupradas.”
“A paquera continua, e tudo que é feito com consentimento e com vontade continua”, diz a promotora.
(Fonte:BBC News)