O uso de organoides, tecidos derivados de células humanas que imitam o funcionamento de órgãos, tem conquistado espaço na saúde. Com múltiplas aplicações, cientistas de diversas instituições cultivam os miniórgãos para testar possíveis medicamentos, desvendar características do corpo e encontrar informações sobre patologias. Com o avanço técnico, pesquisadores desenvolveram formas inovadoras de criar os organoides.
Cientistas do Centro de Oncologia Pediátrica Princess Máxima e do Instituto Hubrecht, na Holanda, publicaram, recentemente, na revista Cell, um estudo que descreve o desenvolvimento de organoides cerebrais 3D a partir de tecido cerebral fetal humano. Diferentemente de métodos anteriores que envolviam estimular células-tronco embrionárias para criar as estruturas, a equipe descobriu que pequenos pedaços de tecido poderiam se auto-organizar. Os mini-órgãos são do tamanho de um grão de arroz.
As estruturas foram utilizadas para explorar o potencial na modelagem do câncer cerebral. A equipe introduziu falhas genéticas associadas ao glioblastoma, um tipo de tumor. Os resultados revelaram a capacidade dos organoides para crescerem e replicarem mutações genéticas específicas.
Leia mais:Benedetta Artegiani, do Centro de Oncologia Pediátrica Princess Máxima e co-líder da pesquisa, frisa que o novo modelo permite entender melhor como o cérebro em desenvolvimento regula a identidade das células. “Também poderia ajudar a compreender como os erros nesse processo podem levar a doenças do neurodesenvolvimento, como a microcefalia, bem como a outras doenças que podem resultar de um desenvolvimento descarrilado, incluindo o câncer cerebral infantil.”
Francisco de Assis Aquino Gondim, neurologista e professor associado da Universidade Federal do Ceará (UFC), ressalta que ensaios com organoides humanos ainda são controversos bioeticamente.
“Representam tecnologia de ponta, mas com restrições, apesar de liberação em muitos países desenvolvidos. No caso do sistema nervoso, importantes princípios neurofisiológicos foram descobertos em invertebrados. Mas os organoides, por sua semelhança com o cérebro de mamíferos e humanos, certamente irão revolucionar o estudo em todas as áreas da neurociência, incluindo tumores.”
Os cientistas planejam continuar explorando o potencial das estruturas com a colaboração de bioeticistas para orientar o futuro desses avanços. Também pensando em ampliar o conhecimento sobre órgãos, uma equipe da Universidade do Sul da Califórnia (USC), nos Estados Unidos, desenvolveu um modelo organoide capaz de gerar todos os principais tipos de células do cerebelo, uma região do cérebro.
Conforme o artigo, detalhado na revista Cell Stem Cell, recentemente, o avanço permitiu o cultivo de células de Purkinje com características moleculares e eletrofisiológicas de neurônios funcionais em um sistema humano. O cerebelo, responsável pelo controle do movimento e funções cognitivas, têm as Purkinje associadas a distúrbios de desenvolvimento e neurodegenerativos.
As estruturas formaram neurônios excitatórios e inibitórios com atividade coordenada e podem ser modelo para estudar e tratar distúrbios cerebrais no futuro, incluindo o meduloblastoma, tumor cerebral comum em crianças.
Giorgia Quadrato, professora assistente da USC, ressalta que o codesenvolvimento e maturação reproduzíveis dos principais tipos de células do cerebelo em um organoide “fornecem uma nova maneira de explorar a biologia subjacente do desenvolvimento e distúrbios cerebelares e avançar nas intervenções terapêuticas.”
Felipe von Glehn, neurologista do Hospital Brasília Águas Claras e membro das academias Brasileira e Americana de Neurologia, frisa que algumas doenças afetam especificamente o cerebelo. “Com o modelo pronto, se pode estudar as patologias. Os cientistas devem pegar células de pacientes e induzi-las para serem um organoide e comparar os neurônios induzidos com os de pessoas saudáveis. As diferenças podem ajudar a descobrir a falha que gera essas condições.”
Na gravidez
Para ajudar quem quer ter filhos, cientistas da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, publicaram um ensaio na revista Cell Stem Cell, destacando avanços no cultivo de “mini-placentas”. Modelos das fases iniciais do órgão fornecem visões cruciais sobre o desenvolvimento da gravidez e as interações entre ele e o útero.
No trabalho, a equipe aplicou proteínas secretadas por células imunitárias no útero, conhecidas como “uterine natural killer cells”, aos modelos para que pudessem imitar as condições onde a placenta se implanta. Então, identificaram proteínas específicas que foram cruciais para o desenvolvimento do mini-órgão.
Segundo eles, essas substâncias contribuem para o sucesso da implantação em uma gravidez. Ashley Moffett, professora da Universidade de Cambridge e líder do ensaio, afirma que nada parecido foi descoberto antes. “Essa é a primeira vez que vemos que uma célula normal invade e transforma uma artéria, e essas células vêm de outro indivíduo, o bebê”, diz.
De acordo com a professora, se as células não conseguirem invadir adequadamente, as artérias no útero não se abrem e, assim, a placenta e o bebê ficam privados de nutrientes e oxigênio.
Maria Laura Costa, ginecologista obstetra e membro da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), detalha que anormalidades no desenvolvimento da placenta e nas interações entre as células do endométrio, revestimento do útero materno, e placenta –células chamadas trofoblastos–, se associam a distúrbios do ciclo gravídico-puerperal. “Seu estudo pode colaborar para a compreensão de uma série de condições associadas à mortalidade e morbidade materna.”
O ensaio também identificou genes relacionados ao fluxo sanguíneo e à implantação, fornecendo pistas consideradas valiosas para pesquisas futuras sobre a pré-eclâmpsia e doenças semelhantes. Costa reforça que a condição é uma síndrome multifatorial. “Entender as causas da doença, as suas bases moleculares, pode colaborar para ser possível avançar na predição, diagnóstico mais preciso e tratamento da doença.”
Avanços notáveis
“Um aprimoramento na criação de organoides, in vitro, é o meio de cultura. Até 1990 e início de 2000, existia apenas cultura 2D. Tinha essa limitação porque só se estudava uma ou duas camadas de células. Com o tempo, foram desenvolvidas matrizes que permitem o crescimento de células tridimensionalmente. Falamos de células que vão se organizar de forma 3D, em várias camadas, o que é mais semelhante ao que acontece in vivo. Essa técnica também está sendo aprimorada.”
Felipe von Glehn, neurologista do Hospital Brasília Águas Claras, da rede Dasa no DF, e professor de neurologia da Universidade de Brasília (UnB).
Tratamento para a conjuntiva
O grupo Organoid do Instituto Hubrecht, nos Países Baixos, desenvolveu o primeiro modelo organoide de conjuntiva humana. Com o modelo, que replica a função do tecido ocular, responsável pela produção de lágrimas, a equipe descobriu um novo tipo de célula, denominada célula em tufo. A descoberta sugere que tais estruturas desempenham um papel crucial em reações alérgicas oculares.
Publicado na revista Cell Stem Cell, recentemente, o ensaio destaca a importância do modelo para testar medicamentos para algumas condições, como olho seco, câncer, alergias e infecções.
Ao criar os organoides, os estudiosos conseguiram replicar o funcionamento da conjuntiva. Em condições simuladas de alergias, os modelos mostraram uma produção diferenciada de lágrimas, com a presença aumentada de células em tufo, recém-descobertas.
“Os organoides começaram a produzir lágrimas completamente diferentes, havia mais muco, mas também havia mais componentes antimicrobianos”, detalhou, em nota, Marie Bannier-Hélaouët, pesquisadora principal do projeto.
Luiz Alberto Rosa Barbalho, oftalmologista do Hospital Oftalmológico de Brasília (HOB), uma empresa do Grupo Opty, sublinha que a descoberta da célula ajudará a desenvolver tratamentos. “Ao que aponta o estudo, as células tufo são componentes que desempenham um papel reativo na alergia. Indubitavelmente, o comportamento e a modulação da atuação celular nesses processos podem representar novas terapêuticas mais efetivas e direcionadas.”
Ícaro Calafiori, oftalmologista do Instituto de Neurologia de Goiânia, sublinha que é importante conseguir novos medicamentos para “melhorar a questão da alergia ocular, que é um grande problema que encontramos no dia a dia da oftalmologia”, disse. “Vão conseguir fazer remédios melhores tanto na maior adesão da lágrima como na questão de aumentar a quantidade desse antimicrobiano para aliviar quadros infecciosos.”
Para os cientistas, o avanço oferece uma base valiosa para pesquisa de medicamentos e abre portas para tratamentos, incluindo a substituição de tecidos para casos de queimaduras oculares, câncer no olho e doenças genéticas.
Falvio Dualibi reitera as múltiplas aplicações da novidade. “Podemos utilizar em pacientes que tiveram perda desse tecido, por queimadura, doença autoimune ou uma série de condições em que há um olho seco severo. Isso vem para nos auxiliar em diversas situações.”
Segundo o artigo, ensaios pré-clínicos estão em andamento para avaliar a viabilidade dessa abordagem.
Importância da lágrima
A lágrima é composta por três camadas: gordura; água e muco. A de muco é afetada em diversas situações, como nas alergias, queimaduras oculares, doenças autoimunes e reações de hipersensibilidade celular. Essa camada tem papel relevante na proteção contra agentes externos que podem levar à infecção. Os distúrbios de lubrificação ocular estão ligados ao excesso ou falta dessas camadas. A compreensão do funcionamento da população celular envolvida nesse equilíbrio possibilita desenvolver novos tratamentos para doenças potencialmente graves.
(Correio Braziliense)