Correio de Carajás

Retrato do combate ao trabalho escravo gera debate em coletiva de imprensa

Organizado pela PADF, o lançamento da campanha “Sou Livre da Escravidão” tem como foco as regiões de Marabá, Itupiranga e Ulianópolis/ Foto: Evangelista Rocah

A pauta sobre a luta contra o trabalho escravo contemporâneo é extensa e intrincada, por isso a campanha de comunicação lançada pela Fundação Pan-Americana para o Desenvolvimento (PADF) é de grande importância.

Para que a informação chegue até o público-alvo, e que este reconheça situações de exploração do trabalho semelhante ao de escravo, os veículos de comunicação são agentes vitais na disseminação deste conhecimento.

No lançamento da campanha, agindo como porta-voz da população, a Reportagem do CORREIO questionou e esmiuçou o tópico junto às autoridades presentes.

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Não passou despercebido à reportagem do CORREIO, a ausência de representantes dos produtores rurais ao evento. No espaço aberto para perguntas, os organizadores foram questionados sobre essa observação.

Sobre isso, Irina Bacci, diretora técnica da PADF, ressalta que o foco dessa etapa da campanha é a conscientização da população e que o diálogo com os agropecuaristas será feito posteriormente.

Ela explica que debates para conscientização dos trabalhadores sobre seus direitos estão em andamento, mas antes dos pecuaristas serem inseridos nas tratativas é preciso que a organização analise os dados obtidos em seus estudos.

“Em uma próxima fase, em breve, depois de março, a PADF lança os resultados do estudo de prevalência. Com ele, nós vamos entender melhor a realidade (do trabalho escravo na região). Na sequência serão divulgadas as atividades com o setor privado e com a pecuária”.

Irina expressa, ainda, que a PADF deseja firmar acordos de cooperação com sindicatos, federações e associações de produtores rurais. Seu objetivo é que em novembro de 2025, quando o Pará recebe a COP30, em Belém, o Estado tenha não só o compromisso com o desmatamento, mas também com o combate ao trabalho escravo.

RESGATE E REINCIDÊNCIA

Na oportunidade, a reportagem também questionou os organizadores do evento sobre como é dado o suporte para que as vítimas resgatadas do trabalho escravo contemporâneo reconstruam suas vidas fora desse cenário.

Francisco Alan Santos, representante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), informa que enquanto sociedade civil, é realizado um trabalho de formação com essas vítimas.

Segundo ele, os trabalhadores são retirados do local, recebem todos os seus direitos como cidadãos e têm de volta, inclusive, suas documentações pessoais, que na grande maioria das vezes são retiradas pelos patrões. Essa é mais uma prática que garante que a vítima permaneça refém indefinidamente.

Francisco detalha que após o resgate, é realizada uma ação de identificação da localidade de onde o grupo de trabalhadores foi retirado – e enviado para o serviço escravo. Nessa comunidade é realizada uma atividade de conscientização e prevenção, mas principalmente humanização. O grande objetivo é dar a essas pessoas uma nova profissão e, também, uma fonte de geração de renda.

“Nós estamos trabalhando em Itupiranga, desde 2015, com mulheres. Muitas delas trabalhavam em fazendas como cozinheiras. Hoje elas têm um grupo de artesanato, fazem pintura em tecido, vendem panos de prato. Tudo isso para que não retornem às fazendas para trabalhar como cozinheiras”, conta.

Apesar disso, ele frisa que é essencial que o governo invista em políticas públicas que alcancem essa parcela da população. Não basta salvar as vítimas do trabalho escravo, é preciso dar a elas condições de permanecerem fora dele.

Procuradora do Trabalho esclarece sobre operações

Nesse contexto, e detalhando um pouco mais sobre o processo de resgate, Sílvia Silva da Silva, procuradora do Trabalho e coordenadora Regional de Combate ao Trabalho Escravo do Pará e Amapá, fala sobre os grupos móveis nacionais.

De acordo com ela, essas equipes realizam operações para resgatar pessoas em situações análogas à escravidão em todo o País. Na realização desses salvamentos, as secretarias de assistência social e, também de saúde, daquelas localidades, são acionadas para prestar apoio às vítimas.

Esses órgãos têm a responsabilidade de, além de fornecer atendimento médico, inserir esses trabalhadores em programas sociais, com o intuito de evitar que eles retornem para aquele cenário.

“É preciso também que as gestões municipais criem políticas públicas de empregabilidade digna. Porque nós não temos a solução para esses municípios, mas os gestores e a própria coletividade sim”, coloca ela de maneira veemente.

Para ela, a capacitação é uma das tentativas de romper o ciclo do trabalho escravo e do tráfico de pessoas. 

Sílvia Silva ressalta que um dos principais meios para essa luta é a implantação de políticas públicas

 

 Casa de Passagem a  ser instalada em Marabá

Pedro Cavalero, representante da Secretaria Estadual de Igualdade Racial e Direitos Humanos (SEIRDH), detalha que recentemente foram entregues para o governo do Estado cinco projetos relacionados a trabalhadores vítimas de exploração. Um deles versa sobre uma casa de passagem para trabalhadores resgatados. “A nossa ideia é que essa casa inicie em Marabá, por ser uma região de alto índice de resgatados”.

Ele explica que não basta retirar esses trabalhadores daquele ambiente degradante, mas é necessário garantir que eles tenham um lugar seguro para repensar os próximos passos de suas vidas.

PIRÂMIDE DA IMPUNIDADE

Ainda que a abolição da escravatura tenha acontecido há quase 136 anos, esse cenário ainda é encontrado em diversas localidades do País. A permeância dessa realidade levanta um debate sobre a impunidade que cerca essa prática.

Esse foi o questionamento levantado por Lívia Maria Ribeiro da Silva de Abreu, advogada, professora de Direito e filha de trabalhadores escravizados. Sua pergunta foi direcionada para Valena Jacob, professora de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Lívia Maria é advogada e pesquisa sobre trabalho escravo na região sudeste do Pará

Valena destaca que o judiciário tem uma postura conservadora e até mesmo uma falta de empatia com os casos de escravidão contemporânea. “Decisões criminais relacionadas ao trabalho escravo não são prioridade e outras acabam passando na frente”, expõe.

De acordo com ela, também pesa um fator antropológico, social e econômico do perfil dos juízes atuais. Detalhes que impactam na identificação deles com a causa do próximo e na falta do compromisso com a justiça social.

“O laboratório de pesquisa vem analisando o reflexo dos anos de governos nefastos que tivemos e acredito que houve um retrocesso em diversas áreas no Brasil, inclusive no judiciário”, reflete.

TRABALHO ESCRAVO DOMÉSTICO

Um outro viés do trabalho escravo, o doméstico, permeia não só as áreas rurais, mas também as urbanas. É comum que meninas sejam retiradas de seus lares de nascença e levadas para “casas de família”, com promessa de estudo e uma vida melhor. Entretanto, o que elas encontram nesses lares é algo completamente diferente.

“É um trabalho trocado por alimentação, vestuário e moradia”, assevera Sílvia Silva da Silva. Ela pontua que ele ainda é uma chaga no Brasil e ressalta que em 2023, inúmeras acusações e casos foram registrados.

“Nós recebemos as denúncias, o Ministério Público Federal ajuíza a ação cautelar de ingresso nesses domicílios, faz a oitiva da trabalhadora, separadamente do empregador. Se caracterizado o trabalho escravo doméstico, este empregador é responsabilizado”, explica a procuradora sobre o processo.

Caso a situação seja confirmada, o empregador é incriminado e, também, deve efetuar o pagamento devido para a trabalhadora.

Como característica da prática vil, Sílvia detalha que as pessoas submetidas a essas condições de trabalho são costumeiramente encontradas em situações degradantes, alojadas em locais inadequados na residência, vivendo em condições sub-humanas, não recebem salário e nenhum direito trabalhista.

São as situações de vulnerabilidade social as que mais influenciam trabalhadores domésticos a se sujeitar a esse tipo de trabalho.

Em um País onde cerca de 80 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza, são necessários prevenção e combate a todas as formas de trabalho escravo, alinhadas com políticas públicas municipais, estaduais e nacionais, que garantam não só o resgate dessas vítimas, mas também seu retorno a uma condição de vida digna. 

 

(Luciana Araújo)