Correio de Carajás

OAB usa cautela sobre participação de trans em sua corrida de Marabá

Reportagem ouve especialista em medicina esportiva, advogados, organizadores de corridas e atletas sobre participação de trans na categoria feminina

orrida da OAB em Marabá está prevista para ser realizada em agosto próximo

Inclusão social é o conjunto de meios e ações que combatem a exclusão aos benefícios da vida em sociedade, provocada pelas diferenças de classe social, educação, idade, deficiência, gênero, orientação sexual, religião, preconceito social e racial. Portanto, inclusão é a capacidade de entender e reconhecer o outro e, assim, ter o privilégio de conviver e compartilhar a vida com pessoas diferentes uns dos outros.

E é nesse contexto que a inclusão de pessoas trans – nesse caso em relação ao esporte – se faz necessária, já que a inserção desse público em atividades esportivas é fundamental para ajudar as pessoas que já passam, diariamente, por muitas situações de preconceitos e dores.

Após a recente reportagem do CORREIO que relata o debate levantado pela promotora de eventos, Rayta Solaires, em que ela, como mulher trans, pede que seja aceita para competir em corridas na categoria feminina, ou que então seja criada uma nova categoria para que possa continuar praticando o esporte, muitas opiniões foram lançadas.

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De um lado, mulheres e homens cis afirmando que não é justa a competição. De outro, o movimento LGBTQIA+ pedindo inclusão e igualdade.

A reportagem do Correio de Carajás procurou vários profissionais para ampliar o debate sobre a temática.

A Reportagem do CORREIO entrou em contato esta semana com o presidente da Subseção local da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Rodrigo Botelho, para saber se a instituição, que protege o direito, inclusive das minorias, vai aceitar trans correndo com mulheres cis, como deseja Rayta Solaires e como prega a comunidade em Marabá.

Rodrigo Botelho: “A OAB está analisando todos os critérios, como inclusão social e hormonal”

Rodrigo informou que havia lido a notícia do Correio de Carajás sobre o assunto e disse o seguinte e achou a discussão pertinente: “Nós encaminhamos a matéria (do Portal Correio de Carajás) para a gestão da corrida, e estamos aguardando um posicionamento de como será. A OAB está buscando as fundamentações para tomar uma decisão porque o Circuito de Corridas irá começar no próximo mês, e essa condição vai ser utilizada para todas as etapas (Ananindeua, Belém, Paragominas, Parauapebas, Marabá e Santarém). O regulamento é um só. Eles estão analisando todos os critérios, como inclusão social e hormonal. A Ordem, como uma vanguardista de inclusão e direitos fundamentais, tem levado em consideração todos esses contextos”, disse Rodrigo Botelho.

Outros organizadores de corrida em Marabá, consultados pelo Correio de Carajás, disseram que estão esperando o posicionamento da Ordem para tomar posição, também.

Advogados

Segundo Antônio Gomes, advogado, professor e um dos coordenadores da Corrida da OAB na Subseção Marabá, a instituição enviou uma solicitação para a Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) para que eles respondam, de forma explícita, como proceder nas corridas.

“O esporte tem uma perspectiva diferente dessa questão social, cultural e ideológica, que às vezes é atribuída para esse debate. O esporte trata de competição, e para competição ser justa ela precisa dar a todos os competidores a mesma lógica de perspectiva de igualdade, ou pelo menos uma referência de possibilidade de igualdade. Então, o tema é polêmico. Mas, existem critérios técnicos para aferir essa possibilidade de chance de igualdade”, diz o advogado, ressaltando que a OAB está buscando a manifestação e o apoio desses critérios técnicos diante da Confederação Brasileira de Atletismo para definir como vai ser feita essa participação.

Professor Antônio Gomes aguarda posicionamento da Confederação Brasileira de Atletismo

Segundo ele, a lógica é sempre incluir mais pessoas nas competições esportivas, trazendo mais gente para as atividades físicas. “O esporte tem essa função, de agregar socialmente. Porém, temos que levar em conta que é uma competição, então haverão vencedores e pessoas que não venceram. E para essa competição ser justa ela precisa que todas as pessoas tenham a mesma oportunidade e a mesma lógica de patamar de referência de competição. O posicionamento do nosso regulamento será feito nessa perspectiva, do que está sendo colocado pela Confederação Brasileira de Atletismo”, ressalta Antônio, sobre a Corrida da OAB, que acontecerá no próximo dia 3 de setembro, em Marabá.

Após a reportagem ser acusada de transfobia, a editoria do Correio de Carajás procurou alguns advogados da área para falar sobre o assunto.

Para Irismar Melo, presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB Subseção de Marabá, a matéria foi cautelosa e com elementos que subsidiaram a narrativa. “A reportagem mostrou decisões de ordem internacional, no que se refere a competições. O que foi pontuado faz todo o sentido. Esse é um debate que tem de ser feito, no sentido, não de social e de gênero, mas pela questão biológica e fisiológica, que a própria competidora ressaltou. Não tem um viés de preconceito, existe um elemento hormonal. A matéria em si foi bem cautelosa, e deixou para que o leitor fizesse sua avaliação e pudesse ter sua opinião”.

Irismar Melo, presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB Subseção de Marabá, diz que reportagem foi “cautelosa”
Professor trans, da Unifesspa, opina sobre o caso de Rayta

 

A Reportagem do Correio ouviu a opinião de Dom Condeixa de Araújo, professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, e reconhecido como primeiro docente trans da instituição.

Ele ressalta que não tem uma ideia fechada sobre esse assunto, mas admite que o debate não é sobre a corrida. “Não sei se uma categoria para pessoas trans, não isola mais. A gente entende que as pessoas podem ter dificuldade para entender certas questões. Mas, o que a pessoa não pode fazer é excluir o outro de uma coisa do qual ela quer fazer parte, porque também tem a questão social, a inclusão para todas as pessoas”, diz.

Para Condeixa, um homem ou uma mulher trans se comporta de acordo com o sexo que se identifica. Por isso, não tem como dizer que uma mulher trans não é uma mulher. “Se é uma corrida feminina, uma corrida de mulheres. Então, todos os tipos de mulheres podem correr”, conclui.

Dom Condeixa se diz preocupado com criação de categoria trans em corridas
Atletas sugerem mudança nas corridas de rua da cidade

 

O CORREIO conversou com três pessoas que estão à frente de grupos/empresas de corrida.

Para Emerson Sousa, da empresa Top Tri, que organiza competições esportivas na cidade, as regras são bem claras. “Tive uma conversa com o presidente da Federação Paraense de Atletismo porque acredito que quando você vai contra os regulamentos da instituição você está quebrando as regras e protocolos. Então, a gente tenta, dentro das possibilidades, fazer as regras acontecerem. Só quem é organizador de corrida sabe das diversidades que a gente passa pra organizar um evento. Há dificuldade pra conseguir parceiros, patrocinadores e colaboradores”, conta.

Segundo o organizador, a própria Federação Paraense de Atletismo enviou um documento para Rayta Solaires e sua advogada onde constam as regras. De acordo com Emerson, o regulamento estadual teria sido enviado à Rayta porque ela questionou um dos argumentos do coordenador, de que não poderia competir na categoria feminina em uma corrida.

Questionado pela reportagem se ele é contra ou a favor a criação de uma nova categoria, Emerson é suscinto. “Não sou contra nem a favor. Sou a favor que a gente siga as regras da Federação Paraense de Atletismo e da Confederação Brasileira de Atletismo”, finaliza.

Já Fabiano Gomes, da Associação Atlética Fabiano Gomes (AAFG), ressalta que uma das missões do esporte é integrar toda a sociedade sem nenhum tipo de discriminação. “O esporte é uma ferramenta de inclusão social, então como vou excluir?” questiona.

Fabiano Gomes lembra que o esporte, por si, é de inclusão, e defende Rayta nas corridas

Contudo, ele ressalta que é preciso um embasamento científico por conta da questão hormonal, que para ele é desproporcional.

“A Rayta quer estar no pódio e é justo. Ela também treinou e é digna de toda aquela honraria, sim. Agora o que não é justo é ela competir com outra mulher pela questão hormonal. É científico. As organizações dos eventos teriam que criar uma categoria LGBTQIA+. O esporte é pra isso, é pra incluir. Não podemos excluir as pessoas. O esporte é qualidade de vida, é saúde. O esporte é para todos. Sou a favor que se crie uma nova categoria. As meninas estão corretas em reclamar, porque realmente é injusto. Mas, a Rayta também está no direito dela de reivindicar. Ela treina, se cuida, se esforça. É louvável. Ela é digna de subir no pódio, mas precisa ser na categoria dela”.

Outra pessoa ouvida pela reportagem do CORREIO é a educadora física Elitelma Cordeiro. Com mais de 30 anos de profissão, a triatleta está à frente da equipe de corrida Vumbora. Para ela, é preciso cautela, contudo a criação de uma nova categoria para abranger a população LGBTQIA+ pode ser uma solução.

“Acredito que pode até criar uma nova polêmica por conta de outra categoria. É muito delicado. Os organizadores de corridas precisam seguir as regulamentações oficiais. A minha opinião é que não dá para uma mulher trans competir na categoria feminina. E criar uma nova categoria precisa rever todos os parâmetros legais”, diz Elitelma.

Educadora física Elitelma Cordeiro defende a criação de uma categoria trans nas corridas de rua em Marabá
Endocrinologista opina sobre categoria trans nas corridas

Um dos procurados pela Reportagem é o médico Leonardo Alvares, endocrinologista titulado pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, doutor em Ciências Médicas pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e membro da Endrocrine Society.

Pioneiro no estudo que avalia as capacidades desportivas de mulheres transgênero, Leonardo utilizou o tema como tese de doutorado e a publicação foi feita na British Medical Journal, uma das revistas científicas mais influentes do mundo.

“Foram avaliadas mulheres que são fisicamente ativas, fazem exercícios regulamente, mas que não são atletas profissionais. Além da composição de musculatura e gordura do corpo, também foi avaliada a capacidade aeróbica dessas mulheres. O diferencial desse estudo é a capacidade aeróbica, por exemplo, a capacidade de corrida de uma pessoa. É uma variável muito importante dentro do desempenho desportivo. A musculatura da mulher trans cai, mas não fica igual à da mulher cisgênero. O mesmo foi verificado na capacidade aeróbica. Essa capacidade diminui, mas também não se iguala a da mulher cisgênero. Ou seja, a capacidade delas caiu em relação aos homens cis, mas não chegou a ficar equiparada a das mulheres cis. Então, haveria sim uma vantagem desportiva. É o que a gente tem de mais recente publicado”, detalha o médico.

O doutor explica que no Brasil, a hormonioterapia com estrógenos só pode ser iniciada a partir dos 18 anos. Por isso, subentende-se que a grande maioria das mulheres trans passou por puberdade masculina e só depois que iniciou a terapia de transição hormonal.

“O objetivo da transição hormonal é diminuir os hormônios sexuais endógenos das mulheres, que é a testosterona. Ou seja, bloquear a testosterona e ao mesmo tempo fornecer os níveis de hormônios femininos que seriam compatíveis com os valores das mulheres cis.  As transformações hormonais começam nos meses iniciais do uso da medicação. Nos primeiros três meses a gente consegue observar modificações corporais. Outras demoram três, quatro, até cinco anos para finalizarem”, ressalta, explicando que, recentemente, o Conselho Federal de Medicina fez a liberação para o bloqueio puberal em adolescentes trans. Contudo, isso só pode ser realizado em um Hospital Escola em caráter de pesquisa científica.

Leonardo explica que atualmente as diretrizes mais seguidas em termos de competição para mulheres trans são aquelas promulgadas pela Federação Internacional de Atletismo e pelo Comitê Olímpico Internacional, que são grandes órgãos mundiais do esportismo e acabam sendo os mais seguidos.

Médico Leonardo Alvares lamenta que mulheres trans, a nível mundial, têm menor acesso ao esporte

Entretanto, Leonardo Alvares afirma que as entidades esportivas não levam em consideração a massa corporal e as alterações fisiológicas porque não há dados suficientes. Segundo ele, o que existem são impressões de que há uma diferença, mas existem poucos dados científicos comprovando essas diferenças, por isso elas não são levadas em consideração.

“A questão técnico-científica e fisiológica do corpo sobre a participação das mulheres trans em esporte é apenas um braço. O próprio Comitê Olímpico Internacional fez uma publicação no início de 2023 que para essa tomada de decisão existem pelo menos dez pontos que deveriam ser analisados para dizer se mulheres trans podem ou não podem competir, como capacidade fisiológica, questões éticas, segregação, inclusão e um estudo para cada tipo de esporte, levando em consideração o nível de treinamento de cada atleta”.

Por fim, Alvares salienta que mulheres trans, a nível mundial, têm menor acesso ao esporte, seja porque não conseguiram fazer educação física no colégio, seja porque não consegue ir a uma academia, não participa de jogos em grupos e por toda a questão de inclusão social.

“A mulher trans perde essa capacidade que o exercício tem de trazer benefícios pra ela, como saúde física e mental. A gente gostaria que todo mundo fizesse atividade física, e sabemos que as mulheres trans têm menor acesso a atividades física, saúde, empregos. Que a polêmica seja levada para as competições internacionais, mas que a gente não esqueça que a população de mulheres trans tem menos acesso ao exercício e aos seus benefícios, e nós como sociedade precisamos incentivar essa inclusão. É preciso diferenciar o esporte amador, de lazer, do esporte competitivo”, finaliza.

(Ana Mangas e Ulisses Pompeu)