Enquanto a Polícia Federal abre inquérito para apurar as causas do incêndio que destruiu o Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro (RJ), pesquisadores do País inteiro já formaram opinião sobre a gênese dessa tragédia. O fio que gerou a fagulha do sinistro começou a ser descascado antes, bem antes do que o domingo, dia 2, quando as chamas consumiram os três andares do prédio. Tudo começou quando o Estado brasileiro removeu a cultura e a pesquisa da sua lista de prioridades… E isso não vem de hoje.
Sobre o incêndio propriamente dito, o que se sabe é que o Museu pedia socorro pelo risco de sinistro desde o mês de maio e há duas semanas sofria picos de energia. Ninguém fez nada. Ninguém faz nada e poucos sabem o que o palacete significava. Ao que parece, nem mesmo o governador do Rio de Janeiro, que se atreveu, em sua conta no Twitter, a “recompor cada detalhe eternizado em pinturas e fotos”.
Para o historiador Eri Cavalcante, professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), não é possível mensurar a dimensão e a gravidade do prejuízo desse incêndio. “Me faltam palavras para expressar o tamanho do desastre que representa esse incêndio e não apenas para a área da História”, relata o professor. “É um desastre que atinge em cheio a vida de uma parte da Ciência no Brasil”, continua.
Leia mais:Eri Cavalcante lembra que o Museu Nacional foi a primeira instituição científica projetada, pensada e construída com essa finalidade; agregava inúmeros acervos de diversas áreas, Botânica, Arqueologia, Paleontologia, Antropologia. Além disso, o Museu – vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – tinha um dos melhores cursos de pós-graduação em Antropologia do Brasil.
Para ele, o incêndio revela descaso com a cultura, algo que foi potencializado quando os parlamentares assinaram a PEC do teto, que vincula os gastos públicos, pelos próximos 20 anos, à inflação acumulada, reduzindo sensivelmente os investimentos em educação e cultura.
“Esse incêndio tem as digitais dos nossos governantes que atualmente vêm direcionando esse tipo de política pública para tudo que envolve a cultura, a memória, a educação e a ciência”, critica o historiador.
“Todos os parlamentares e o presidente são culpados por essa tragédia. É lamentável. É muito triste, é um dia de luto, é como se um parente muito amado tivesse falecido ontem à noite”, resume.
“CRIME”
Atualmente morando no Rio de Janeiro, onde faz Doutorado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), o geógrafo Bruno Malheiro, professor da Unifesspa, em Marabá, desabafou sobre o caso: “A mais antiga instituição científica do Brasil, o Museu Nacional, virando cinzas por conta de um incêndio! Duzentos anos de acervos! A ciência e a história do Brasil em chamas! Tragédia? Não! Crime!”.
Malheiro chama atenção para o fato de que o Museu detinha o maior acervo de artefatos indígenas, a mais importante coleção arqueológica do Brasil, o maior patrimônio de história natural, documentos históricos de valor inestimável, bibliotecas… “Tudo virou pó!”
Para ele, o incêndio também é resultado do sucateamento das universidades, dos cortes exorbitantes em Educação, do desmonte na cultura intensificado no atual governo. “Não temos museus que nos ensinem a infâmia da ditadura, não temos museus que nos mostrem os horrores da escravidão, não temos museus para expressar o massacre às populações indígenas ao longo de toda nossa história, e os que ainda temos, estão em ruínas, o mais emblemático deles, queimando”, escreveu em sua linha do tempo na rede social no exato momento em que o Museu ardia em chamas.
“Quantas vezes estive lá, quantas pessoas levei lá, quantas vezes visitei a biblioteca do PPGAS, quantas referências minhas e de tanta gente estavam nesses acervos, quanto trabalho de pesquisa destruído…”, lamenta Bruno Malheiro.
“Quanta tristeza saber que um dos espaços mais importantes desse país, acessível à população mais pobre, de localização democrática, foi destruído! Revolta e mais revolta!”, finaliza.
Reitor da UFRJ já alertava sobre consequências por falta de recursos
Cerca de um mês atrás, Roberto Leher, reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), alertou para a catástrofe da falta de recursos para gerir o Museu e indicou que o problema abrange toda a educação superior. Segundo ele, ainda em 2015, na UFRJ as verbas da União foram de R$ 341 milhões para o seu custeio e investimentos, sendo que R$ 53 milhões foram contingenciados.
Em 2018, o orçamento da União está reduzido para R$ 282 milhões. E novos cortes estão sendo anunciados. Assim, as verbas de investimento despencaram de R$ 51 milhões, em 2016, para R$ 6 milhões em 2018.
“E com isso, prédios estão com a construção interrompida, os prédios prontos estão sem fornecimento de energia, moradias estudantis ficam atrasadas, alimentando a evasão de estudantes. E o estoque da dívida somente não cresce em virtude do forte corte de gastos de custeio empreendido desde 2015, ceifando mais de 1,3 mil postos de trabalho terceirizados. Mas os cortes chegaram ao limite”, avisou.
ANTES DO FOGO A FUMAÇA
Exista uma cronologia de toda essa tragédia, que pode ser recuperada pelas manchetes de jornais, revistas e sites. Em 2015, o Estadão publicava a seguinte notícia: “Museu Nacional, o mais antigo do Brasil, fecha por falta de dinheiro”. O texto diz que a UFRJ estava impotente diante da insensibilidade da chamada “política de austeridade”, o que causou o fechamento do museu.
“Só nos resta esclarecer a comunidade universitária e a sociedade sobre a realidade que explica a suspensão das visitas, e vir a público para solicitar o apoio da sociedade e buscar sensibilizar as autoridades governamentais”, dizia uma nota oficial da diretoria do Museu.
Em 2016, a Veja Rio noticiou: “Museu Nacional suspende visitação por falta de verba. Na época, o comunicado atribuiu a suspensão das visitas à falta de verba para pagar os serviços de limpeza e vigilância. E, depois disso, já em 2018, o Globo lançou a seguinte manchete: “’Só temos verbas para medidas paliativas’, diz diretor do Museu Nacional”. (Chagas Filho)