- Falso
- É falso que vacinar crianças contra a covid-19 seja “assassinato em massa”, como afirma, em vídeo, uma médica que é candidata a deputada federal por São Paulo. O Comprova entrou em contato com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e com a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Ambas as instituições informaram que as afirmações não são verdadeiras. Também foram consultadas as bulas das vacinas dos imunizantes aplicados em crianças no Brasil: a Coronavac e a Comirnaty da Pfizer, e nenhuma das vacinas apresenta relação com as doenças citadas no vídeo e nem com óbitos. Além disso, os dados disponíveis até aqui indicam que as vacinas trazem mais benefícios do que riscos.
Conclusão do Comprova: É falso que vacinar crianças seja “assassinato em massa”, como diz a médica e candidata a deputada federal Maria Emilia Gadelha Serra em vídeo compartilhado em redes sociais.
No conteúdo, ela se queixa de documento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), publicado em 25 de julho e disponível no site da instituição sobre a importância da vacinação infantil. O texto da entidade alerta sobre o aumento de casos do coronavírus com a disseminação da variante ômicron e suas sublinhagens no Brasil.
Leia mais:Ao falar sobre a imunização de menores de 18 anos, Gadelha diz que as pessoas devem estar “preparadas para ir ao velório” dos filhos e que “pessoas estão morrendo de mal súbito, infarto do miocárdio, AVC, derrame cerebral, doenças autoimunes e agora começando uma epidemia de câncer nunca antes vista” após se vacinarem.
Procurada pelo Comprova, a Anvisa afirmou que “até o momento, os dados de monitoramento das vacinas apontam que a relação de benefício e risco das vacinas é positiva” e que os eventos adversos delas estão descritos na bula desses produtos. Esses documentos, por sua vez, não registram reações graves às vacinas, óbitos, ou relação dos imunizantes com as doenças citadas por Gadelha.
Também para a reportagem, o Ministério da Saúde afirmou que “não há nenhum caso registrado de morte de criança ou adolescente em decorrência da vacina” no país.
“No início da vacinação, até podíamos ter esse tipo de dúvida, mas passados 2020, 2021 e agora em 2022, vemos que nada ocorreu”, diz o médico José Davi Urbaez, presidente da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal (SIDF), também consultado pela reportagem.
Em nota enviada ao Comprova, a SBP repudiou as acusações e declarações de Gadelha e afirmou que ela “promoveu a desinformação, por meio de ‘fake news’”. A associação também informou que medidas foram tomadas em relação às mentiras ditas pela médica.
Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma falsidade.
Alcance da publicação: No Telegram, o conteúdo falso teve, até o dia 13 de agosto de 2022, 32,3 mil visualizações. Originalmente também compartilhado no Instagram, o vídeo tinha, até o dia 27 de julho, cerca de 600 interações, mas foi removido da plataforma ao final do mês.
O que diz a autora da publicação: Procurada pelo Comprova, Maria Gadelha não retornou o contato.
Como verificamos: Primeiramente, entramos em contato, via WhatsApp, com a assessoria de comunicação dos médicos citados por Gadelha a fim de obter seus posicionamentos a respeito do conteúdo. Renato de Ávila e Melissa Palmieri, ambos da SBP, foram citados por Gadelha como responsáveis pelo documento, mas preferiram não se pronunciar.
Procuramos, via e-mail, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e a SBP.
Ao mesmo tempo, contatamos a Anvisa, por e-mail, em busca de informações sobre eventos adversos graves associados à vacinação em crianças e a possibilidade de uma “epidemia de câncer” por causa da imunização.
O Comprova ainda entrevistou o médico José Davi Urbaez, da SBI, para checar se há comprovação científica que associa a vacina a mortes e doenças citadas pela médica no vídeo.
Também solicitamos posicionamento do Ministério da Saúde, mas não houve resposta. Por fim, tentamos contato com a médica Maria Emilia Gadelha por telefone e e-mail, mas também não houve resposta.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 16 de agosto de 2022.
Dados da vacinação infantil
Segundo o Vacinômetro covid-19, plataforma do Ministério da Saúde, até esta segunda-feira (16), a 1ª dose da vacina contra o coronavírus foi aplicada em 13.852.980 crianças de 5 a 11 anos no Brasil, e a 2ª em 9.248.823 pessoas dessa faixa etária. Por sua vez, 16.648.874 de jovens de 12 a 17 anos tomaram a 1ª dose; 13.860.848 receberam a 2ª dose; e 3.529.848, a dose de reforço, segundo a pasta.
Um estudo publicado em maio deste ano, pelo periódico The New England Journal of Medicine, mostrou que a vacinação de crianças de 5 a 11 anos reduziu as internações em mais de dois terços desde que a covid-19 surgiu.
A pesquisa, feita nos Estados Unidos, mostrou que aproximadamente 92% das crianças de 5 a 11 anos que foram hospitalizadas por complicações da doença não estavam imunizadas com quaisquer doses da vacina. O estudo foi feito com 267 crianças de 5 a 11 anos e com 918 adolescentes de 12 a 18 anos.
Os pesquisadores concluíram que a vacina da Pfizer teve uma eficácia de 68% contra internações de crianças de 5 a 11 anos. O estudo foi feito entre julho de 2021 e 17 de fevereiro deste ano. Em relação à faixa etária de 5 a 11 anos, foram avaliados dados entre 19 de dezembro de 2021 e 17 de fevereiro deste ano, período em que o imunizante da Pfizer foi o único liberado para esse público nos Estados Unidos.
Em 13 de julho deste ano, a Anvisa aprovou o uso emergencial da Coronavac para crianças entre 3 e 5 anos. Como mostra o G1, os técnicos da agência confirmaram que não havia registro de nenhuma morte de pessoas entre 6 e 17 anos em decorrência da aplicação da vacina, assim como de adultos acima de 18 anos de idade.
Na faixa etária de 2 a 17 anos, de acordo com documento divulgado em 13 de julho pela Gerência de Farmacovigilância da Anvisa, 79% das notificações de eventos adversos pós-vacinação foram classificados como não graves. Ainda segundo a Agência, os eventos adversos graves observados após a administração de mais de 103 milhões de doses da Coronavac no Brasil são considerados raros ou raríssimos nesse grupo (página 18 do documento).
Vacinação infantil x mortes
O médico José Davi Urbaez, presidente da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, desmente a afirmação de que há comprovação científica que associa a vacina contra a covid-19 a mortes pelas doenças citadas pela médica no vídeo. Segundo ele, se essas constatações fossem verdade, “isso seria um escândalo”.
“No início da vacinação, até podíamos ter esse tipo de dúvida, mas passados 2020, 2021 e agora em 2022 vemos que nada ocorreu”, diz.
Além disso, ele afirma que a autora do vídeo não apresenta dados que corroboram a sua tese e que informações sobre quaisquer mortes no país podem ser obtidas no Sistema de Informação sobre Mortalidade (Sim), plataforma do Ministério da Saúde.
O que diz a Anvisa?
Procuramos a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que é a agência reguladora vinculada ao Ministério da Saúde responsável por analisar e liberar as vacinas aplicadas no Brasil. Em nota, a Anvisa destacou que “todos os eventos adversos conhecidos das vacinas e medicamentos em uso no Brasil estão descritos em suas bulas, bem como novos eventos que possam ser identificados a partir da investigação e do monitoramento do uso.”
A Agência reforçou que o monitoramento de farmacovigilância busca avaliar de forma constante a relação de benefício e risco das vacinas e que, até o momento, os dados da pandemia e os dados de monitoramento dos imunizantes apontam que a relação de benefício e risco da vacinação é positiva. Ou seja, os benefícios das vacinas superam eventuais riscos.
Bulas das vacinas
As vacinas aplicadas em crianças no Brasil e citadas no documento da SBP são a Coronavac, que pode ser dada em crianças a partir de 3 anos, e a Pfizer, para crianças de 5 a 11 anos. A respeito dos efeitos adversos, tanto a bula do imunizante do Instituto Butantan quanto a da Pfizer descrevem desde as reações muito comuns até as raras.
Entre as reações muito comuns, aquelas que podem ocorrer em mais de 10% dos pacientes, está a dor no local de aplicação, efeito registrado em ambos os imunizantes. No caso da vacina da Pfizer, também destaca-se dor de cabeça, diarréia, dor nas articulações, cansaço, calafrios, febre, inchaço no local de injeção e dor muscular. Essas três últimas reações aparecem na bula da Coronavac como comuns, que podem ocorrer entre 1% e 10% dos pacientes. Também estão nessa relação, dor de cabeça, tosse, coriza, dor de garganta, diminuição do apetite e dor muscular.
Já em relação às reações mais raras, a Pfizer apresenta a paralisia facial aguda como registrada entre 0,01% e 0,1% dos pacientes que tomaram o imunizante. Miocardite (inflamação do músculo cardíaco) e pericardite (inflamação do revestimento exterior do coração) são apontados como efeitos muito raros pela fabricante, sendo apresentados em menos de 0,01% dos pacientes que utilizaram o imunizante. Segundo o documento, esses casos foram relatados principalmente em adolescentes, entre 12 a 17 anos, após tomarem a segunda dose da vacina e em até 14 dias após a vacinação. Os sintomas foram leves e os indivíduos se recuperaram dentro de um curto período de tempo após repouso.
De acordo com as bulas das duas vacinas, todas as reações adversas aos produtos não foram graves, apenas leves e moderadas. Em nenhum momento há registro das doenças citadas no vídeo verificado ou casos de morte em decorrência da aplicação da vacina.
Sociedade Brasileira de Pediatria
Responsável pelo documento criticado no vídeo investigado, a SBP se manifestou em nota. A instituição informou que “repudia veementemente as acusações e declarações veiculadas pela Sra. Maria Emilia Gadelha em vídeo de objetivos obscuros que circula nas redes sociais”. A sociedade destacou que o vídeo promove a desinformação e fomenta o movimento anti-vacina, “o que tem sido extremamente prejudicial à saúde pública, especialmente em tempos de pandemia”.
De acordo com a SBP, a situação foi denunciada ao Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, pois as declarações da médica, que foram consideradas pela sociedade como “injustas, dolosas, inverídicas, perigosas e difamatórias agressões”, representam infrações ao Código de Ética Médica (CEM). Além disto, a SBP informou que encaminhou a denúncia às esferas cíveis e criminais, para que a responsável pelo vídeo esclareça as afirmações perante o Juizado Especial Criminal e a Promotoria da Infância e Juventude do Ministério Público.
Quem é a médica que aparece no vídeo
Maria Emilia Gadelha Serra é médica credenciada no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp). De acordo com o site da entidade, a especialidade dela é a otorrinolaringologia, sob o CRM 63451.
Em seu Instagram, ela usa uma foto em que está escrito em inglês “We do not consent – Say no to vaccines passports” (“Nós não consentimos – Diga não ao passaporte de vacinas”, em tradução livre). Na mesma rede, ela se intitula como “médica-detetive hardcore com sangue Viking” e presidente do Alpha Group e da Sociedade Brasileira de Ozonioterapia Médica. Ozonioterapia é uma forma de medicina alternativa que alega aumentar a quantidade de oxigênio no corpo introduzindo ozônio. Essa técnica não é permitida pelo Conselho Federal de Medicina e pode ser aplicada apenas em testes clínicos.
Em 24 de agosto de 2021, o Comprova classificou como enganosa outra afirmação da médica: em uma live, ela disse que a maioria dos casos graves da covid-19 no Brasil ocorrem em pessoas já vacinadas. Também já mostramos que não havia fundamento em dizer que as vacinas causavam AVC, como ela fez durante uma palestra.
Por que investigamos: O Comprova investiga conteúdos suspeitos sobre a pandemia, políticas públicas e eleições que tenham viralizado nas redes sociais. Juntos, os conteúdos investigados aqui tiveram mais de 32 mil interações no Instagram (antes de ser removido) e Telegram.
Quando o conteúdo trata da pandemia, a verificação é ainda mais necessária, porque a desinformação pode levar as pessoas a deixarem de se proteger e se exporem a riscos de infecção. Isso fica ainda mais evidente pelo fato do vídeo falar especificamente da vacinação infantil, que ainda está imunizando com a primeira dose as crianças de 3 a 5 anos.
Outras checagens sobre o tema: Checagens anteriores do Comprova mostram que a mesma médica chegou a disseminar informações enganosas para desincentivar a vacinação contra a covid-19, como o vídeo em que ela afirma que os imunizantes são experimentais e que faltam evidências sobre vacina da Pfizer. Além de também já ter sido desmentida por ter distorcido estudos sobre a imunização contra o coronavírus.
Esta verificação foi feita por jornalistas do UOL, Imirante, SBT e SBT News que participam do Programa de Residência no Comprova.
Desde 2020 o Correio de Carajás integra o Projeto Comprova, que reúne jornalistas de 41 diferentes veículos de comunicação brasileiros para investigar conteúdos enganosos, inventados e deliberadamente falsos sobre políticas públicas, eleições e a pandemia de covid-19 compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens.