A notícia das mortes do indigenista Bruno Ferreira e do jornalista britânico Dom Philiphs no Vale do Javari, no estado do Amazonas, região Norte do Brasil, coincidiu com a divulgação do Dossiê “Fundação Anti-Indígena: Um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro”, elaborado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) em parceria com a Associação de Servidores da Funai (INA), que denunciam a política anti-indígena da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) na gestão do governo de Jair Bolsonaro.
Em mais de 200 páginas, pesquisadores e indigenistas denunciam o aparelhamento e sucateamento do órgão, assédios, ameaças e perseguições aos servidores, centralização e insuficiência de recursos, desestruturação das bases de apoio nas terras indígenas, paralisação dos processos demarcatórios, entre outras ações com o objetivo de enfraquecer a proteção dos direitos indígenas e atender aos interesses de ruralistas, garimpeiros e madeireiros ilegais, entre outros grupos que atuam às margens da lei e que têm aumentado a ofensiva contra os territórios, lideranças indígenas e ativistas que atuam na defesa dos direitos dos povos originários no Brasil e das populações tradicionais.
Os números do referido relatório também corroboram com outro dado que coloca o Brasil na 3ª posição em número de mortes de ativistas em Direitos Humanos, segundo o relatório “Defender o amanhã: A crise climática e as ameaças contra os defensores do meio ambiente e da terra”, elaborado pela ONG Global Witness.
Leia mais:Certamente não se trata de mera coincidência, o assassinato de ativistas em direitos humanos e direitos indígenas, defensores e defensoras dos povos, populações tradicionais e das florestas nas Amazônias tem sido conhecidos, não de hoje. Nomes como Chico Mendes, Dorothy Stang, José Claudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo e, mais recentemente, Bruno Pereira e Dom Philiphs, fazem parte da trágica estatística de pessoas que foram assassinadas por defender a Amazônia e seus povos.
A violência no campo e nas florestas não é algo novo no cenário geo/sociopolítico amazônico, as mortes de pessoas indígenas, agricultores e povos do campo é parte das trágicas políticas desenvolvimentistas que assolam historicamente o território que compreende a Amazônia brasileira. A falta de políticas públicas que garantam a demarcação e a proteção das terras indígenas e das terras públicas gera um quadro de insegurança e sucessivas violências que infelizmente, só tem aumentado.
E nesse cenário, as mulheres são as que mais sofrem violência. Pesquisa realizada pelo Instituto Igarapé indica que 08 em cada 10 ativistas ambientais mulheres já sofreram algum tipo de violência na Amazônia, tendo como consequência o abandono das atividades ou terras onde atuavam para se protegerem, ou ainda, para integrarem programas governamentais de proteção as pessoas ameaçadas. Os estados com mais recorrência desses casos são Amazonas, Acre, Pará e Roraima.
Outro relatório, divulgado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) que levantou casos de violência contra ativistas no período de 2012 a 2020 indica que 48 pessoas foram assassinadas enquanto exerciam suas atividades. Somente em 2021, o aumento no número de assassinatos em conflitos no campo foi de 75%, enquanto o número de mortes em decorrência de conflitos registrou aumento de 1.100%.
Os assassinatos de ativistas defensores de direitos humanos, ambientalistas e lideranças indígenas revela a face mais cruel do projeto em curso no país, que conta com um conjunto de estratégias já conhecidas que reúnem ações coordenadas para atacar sistematicamente povos indígenas, populações tradicionais, seus territórios e seus defensores.
São ações coordenadas de sucateamento dos órgãos de defesa e proteção, esfacelamento das políticas públicas, programas e projetos que deveriam garantir a proteção, somam-se a isso os incentivos velados e explícitos à intrusão de terras indígenas e terras públicas para a realização de atividades ilegais, na maioria das vezes, com conivência e participação de autoridades públicas dos municípios mais próximos que, de longa data, são conhecidas como inimigas das coletividades que resistem e reexistem nesses territórios.
Quando o Estado brasileiro age transferindo, perseguindo, removendo e ameaçando de forma deliberada pessoas que atuam nos órgãos de proteção e fiscalização por realizarem seu trabalho, fica evidenciado de que lado está e que a barbárie, mais uma vez está instalada.
Não é novidade nenhuma a concretização do enfraquecimento e sucateamento da FUNAI, enquanto órgão de defesa, proteção e fiscalização das terras indígenas e como principal órgão de proteção dos povos indígenas em situação de isolamento voluntário. As promessas fizeram parte da plataforma de campanha do atual governo que garantiu que iria “passar uma foice no pescoço da FUNAI”. A retórica da violência como agenda de governo está sempre presente nos discursos e nas ações do atual presidente que indicam que há uma guerra declarada contra os povos indígenas e seus defensores no Brasil.
Não temos dúvidas que os recentes assassinatos de Bruno e Dom no Vale do Javari ganham tamanha notoriedade por se tratar de um jornalista não brasileiro, o que direcionou, por alguns dias, a atenção mundial para a Amazônia. Vale ressaltar que as violências contra as pessoas indígenas e ativistas acontecem cotidianamente nesse país, os Guarani Kaiowá estão sendo atacados e assassinados brutalmente por latifundiários e pelos agentes do estado do Mato Grosso do Sul nos seus processos de retomada dos territórios de onde foram violentamente expulsos, no entanto, esses casos não têm tomado a notoriedade devida nem repercussão nacional e mundial.
A perseguição política-institucional e o assassinato de Bruno, servidor licenciado da FUNAI é emblemática das políticas anti-indígenas em curso nesse país. Bruno atuava de forma comprometida e competente na Coordenação Geral de Indígenas Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), de onde foi exonerado em 2019, depois de uma operação bem sucedida contra o garimpo no território Yanomami, em Roraima. Com mais de uma década de atuação com povos indígenas de recente contato e em situação de isolamento voluntário, o indigenista tinha, além da experiência, o compromisso político com a defesa dos povos indígenas e territórios, sendo reconhecido pela excelência dos trabalhos realizados e pela relação de confiança e parceria construída com os povos do Vale do Javari.
Bruno é identificado pelos indígenas com os quais conviveu e trabalhou como um parceiro, alguém que “veste a camisa” e é comprometido com a defesa dos povos e territórios. Em vídeo gravado em 2020, durante a pandemia da COVID 19, Bruno se apresenta como servidor licenciado e ex-coordenador de “Índios Isolados” de recente contato, do órgão indigenista brasileiro e destaca sua atuação de aproximadamente 10 anos no Vale do Javari. O vídeo foi feito com o objetivo de chamar a atenção para a urgente necessidade de proteção do território e para denunciar os invasores que ingressam na Terra Indígena de forma ilegal: madeireiros, garimpeiros, traficantes, pescadores e caçadores que formam uma rede criminosa que atua às margens da lei.
A Terra Indígena Vale do Javari foi demarcada em 2000 e homologada em 2001, possui uma área de 8.544.482 hectares e está localizada no extremo oeste do Estado do Amazonas, nas fronteiras do Brasil com a Colômbia e Peru. O território abriga os povos com diferentes situações de contato, os Mayuruna/Matsés, Matis, Marubo, Kulina Pano, Kanamari, e um grupo de pessoas da etnia Korubo e Tsohom Dyapá considerados de recente contato. A área também abriga grupos indígenas em situação de isolamento voluntário, sendo a maior concentração de grupos nessa condição no Brasil. Por meio da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados, a FUNAI, como órgão do governo federal tem o dever legal de garantir a proteção dos mesmos.
Os povos indígenas do Vale do Javari estão articulados e fazem a resistência em diferentes organizações: a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (UNIVAJA), Organização das Aldeias Marubo do Rio Ituí (OAMI), Associação Indígena Matis (AIMA), Organização Geral Mayuruna (OGM) e a Associação Kanamari do Vale do Javari (AKAVAJA) que atuam de forma autônoma e em parcerias para realizar a vigilância dos territórios contra os invasores, colocando em risco suas próprias vidas.
O acirramento das invasões e da violência nos territórios indígenas estão diretamente relacionados ao aparelhamento da FUNAI, loteada entre os militares que orquestram o desmonte e enfraquecimento do órgão, assim como ocorre com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Como consequências, o acirramento e aumento dos conflitos, assassinatos, invasões e atividades ilegais que são estimulados por discursos de autoridades governamentais e que, servem como estímulos para as invasões.
Não são apenas terras que estão em disputa nesse país há mais de 500 anos, são lógicas, modos de vida e de organização social, culturas, línguas, cosmologias ‘outras’ que têm o bem viver como princípio. Os povos indígenas, em sua maioria, narram em suas histórias de origem a necessidade do constante e permanente equilíbrio entre os seres humanos e não humanos, a terra, as plantas, os animais e os astros que fazem parte desse universo cosmológico que orienta todas as relações. A terra, concebida como mãe, é respeitada e cuidada. Diferentemente da ideologia capitalista em que a terra é mercadoria e a lógica da exploração dos recursos naturais em função do lucro baseiam as relações de exploração e escravização de outros humanos para o enriquecimento de alguns. Basta olharmos os números referentes aos latifúndios existentes no Brasil e a ocorrência de trabalho escravo, especialmente na Amazônia.
São mundos e concepções políticas de sociedade distintos e em disputa, são visões e concepções antagônicas que fazem parte de projetos, também, muito distintos. Neste ano, temos mais uma vez a possibilidade de mexer as peças desse tabuleiro e definir qual projeto prevalecerá no Brasil e nas Amazônias. Como disse em colunas anteriores, defender os povos tradicionais e as florestas e a garantia da continuidade da vida não só na Amazônia e no Brasil, mas do próprio planeta.
Bruno e Dom. Presentes!
Rosani Fernandes é Kaingang, Educadora, Mestre em Direito e Doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), atualmente cursa Pós-Doutoramento na Clínica de Direitos Humanos da Amazônia (CIDHA/PPGD/UFPA), assessora a Associação Kyikatêjê Amtàti. Milita em Direitos Humanos e Indígenas. Instagram: @rosanikamury