Ana Mangas e Ulisses Pompeu
As mulheres indígenas passaram séculos tendo uma certa invisibilidade na sociedade. Esquecidas e vítimas da desigualdade de gênero e do preconceito das pessoas brancas, elas agora se tornam protagonistas e escrevem uma nova história.
Leia mais:Ganhando força, elas passaram a frequentar universidades, se fazem cada vez mais presentes na luta pelos direitos iguais, proteção do meio ambiente, defesa do direito à terra e cultura das tradições.
A liderança da mulher indígena se tornou fundamental para o equilíbrio e a equiparidade social do local ao qual pertencem. Mulheres firmes, responsáveis e com visão de futuro, dividem as tarefas e se fortalecem em suas comunidades como referência para as gerações futuras.
O Correio conversou com duas mulheres indígenas que são protagonistas no meio em que vivem:
A 1ª cacique do Povo Gavião da Montanha
A filha do cacique Payaré, Kátia Silene da Costa Vandenilso, foi escolhida para ser liderança do povo Akrãtikatêjê, cuja aldeia fica a menos de 10 km de Morada Nova.
Ela reconhece que seu pai quebrou barreiras para colocá-la no topo e admite que se sentiu excluída pelo próprio povo. “Estou sendo muito forte. Nossa cultura não permitia ser mulher liderança, e na minha época nem estudar a gente podia. Às vezes, ainda vejo muitos caciques que não querem me respeitar como mulher. Mas isso só serve para me fortalecer”, argumenta.
Com muitas críticas, Kátia recarrega suas forças no trabalho, dando continuidade ao legado que seu pai deixou. Visionário, Payaré acreditava no retorno da terra e sempre falava que o povo tinha de valorizar o território e trabalhar.
“Ele acreditava que a autonomia era pelo trabalho. Que só seríamos respeitados como indígenas mostrando trabalho. Então, a gente se fortalece dessa forma, valorizando a cultura e o conhecimento. Somos criticados porque ‘indígena não trabalha’. E na minha gestão, eu tento mostrar que somos capazes”, orgulha-se.
Vindos de Tucuruí após serem atingidos pela barragem e vivendo na Terra Mãe Maria, cerca de 25 famílias compõem o povo Gavião da Montanha.
Trabalhando com psicultura, venda de castanha e cacau, criação de alevinos e plantio de milho e mandioca, a comunidade começou a criar gado recentemente, em uma outra área que conquistou na justiça.
“Aqui só fica quem quer trabalhar. Tenho um sonho que é o povo acordar e cuidar do que é seu. Estudar, se formar, ocupar o território e trabalhar. Ser indígena trabalhando. Incentivo, valorizo e acredito na educação. Quero que surjam mais mulheres lideranças, que elas ocupem o espaço na sociedade indígena e mostrem o valor da mulher”, enfatiza Kátia.
A cacique sabe da importância e representatividade que possui diante seu povo e a sociedade em geral. Kátia é ativa nas ações das universidades e encontros estudantis. Participa de congressos, entrevistas e palestras. “Quando as pessoas me procuram para falar sobre o nosso trabalho, vejo como uma esperança. Me orgulho de passar meu conhecimento e minha força de mudar a cara da sociedade. Quero que meu povo melhore de vida e que não sejam sedentários do capitalismo, com recursos da Vale e Eletronorte. Por isso procuro fortalecer meu povo. Quero deixar essa semente pra eles”.
FONTES DE INSPIRAÇÃO
Questionada sobre as mulheres que são suas fontes de inspiração, Kátia cita a vereadora e presidente da Fundação Casa da Cultura de Marabá, Vanda Américo, e Josélia Leontina de Barros, promotora de Justiça.
“Elas são pessoas que sempre me incentivam. Mas eu também me inspiro nas mulheres da roça, camponesas, ribeirinhas. Vim de uma vida sofrida, quando meu povo foi expulso, fomos morar debaixo de uma mangueira. Já pedi comida, vesti roupa que os outros me deram. Sou uma mulher guerreira e não tenho vergonha de quem sou e de onde vim. Isso só me fortalece”.
A cacique finaliza dizendo que já ouviu de pessoas mais jovens “quando crescer quero ser igual a Kátia” e que isso é um orgulho para ela. “Eu acredito no trabalho e na força das mulheres”.
Rosane: referência no ensino acadêmico
Pertencente ao povo Kaingang, um dos mais numerosos do Brasil, Rosane de Fátima Fernandes é natural de Santa Catarina. De uma aldeia muito pequena, que inclusive passou por muitos conflitos de reconhecimento de território na década de 80, ela relembra que a região oeste do estado que morava era uma terra de disputa.
Já casada, Rosane conta que seu marido tem vínculos familiares com o povo Gavião, e foi assim que conheceu esta região. “Vim pra cá a convite das lideranças do povo Gavião Kyikatêjê para compor uma equipe de profissionais indígenas para trabalhar na associação e comunidade. Como pedagoga, já tinha experiência no trabalho de produção de material didático com formação de professores indígenas, e cheguei aqui em 2004”.
Durante esses 18 anos, a pedagoga atuou com diferentes povos do Estado do Pará, principalmente com os 14 povos indígenas da região sudeste.
“Quando morei na comunidade Gavião, de 2004 a 2012, trabalhei na assessoria étnico-pedagógica e fomos estruturando todo o sistema de educação. Quando cheguei à aldeia só tinha do primeiro ao quarto ano. Não havia o ensino fundamental completo nem ensino médio. A escola funcionava improvisada num galinheiro”, relembra.
Hoje, a aldeia possui ensino médio, com duas escolas construídas pela Secretária de Educação do Pará, e se tornou referência na formação de professores indígenas e na produção de material didático próprio da cultura.
Rosane é pedagoga e se especializou em Currículo e Metodologia de Ensino. Quando chegou ao Estado do Pará, ingressou no Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal do Pará. “Sentia a necessidade de discutir o direito na educação escolar indígena, já que é uma modalidade específica no MEC. No entanto, não é reconhecida nem pela própria Seduc, muito menos pelas secretarias municipais”, lamenta.
Diante desses empecilhos, em concretizar os direitos à educação escolar indígena, contratação de professores, entre outras coisas, Rosane se viu desafiada e provocada pela comunidade Kyikatêjê a buscar uma formação política em nível de mestrado, para que pudesse trazer mais subsídios para o trabalho desenvolvido.
“Foi quando ingressei num mestrado em Direito, pela UFPA, por reserva de vagas indígenas. Concluí em 2010, com condições adequadas e com o apoio da comunidade. Construí uma dissertação em que mostrei como uma comunidade indígena pode se apropriar da escola como instrumento de afirmação de direitos”.
A pedagoga ressalta que tem trabalhado na construção da matriz escolar dos povos indígenas da Mãe Maria com um tripé: gestão territorial; formação política das lideranças; fortalecimento e revitalização cultural.
Inquieta e com sede de respostas e melhorias a respeito das discussões que envolvem a sociedade indígena, Rosane iniciou o doutorado em Antropologia. “Precisava me apropriar das discussões acerca dos referenciais antropológicos, justamente para trabalhar a partir da temática da diversidade cultural, não só com escolas indígenas, mas também com as escolas não indígenas. Existe uma lei que obriga as escolas públicas e particulares a trabalharem com a temática da cultura e da história indígena e afro-brasileira, só que os educadores não estão preparados”.
Avaliando o contexto atual, Rosane conta que hoje em dia existe um protagonismo muito mais visível das indígenas mulheres (a identidade vem primeiro que o gênero).
“Exercemos um protagonismo, participando de reuniões, influenciando decisões, participando de atividades culturais e políticas da comunidade. No entanto, nas últimas décadas, as principais organizações indígenas estão sendo lideradas por mulheres. Há um estudo que mostra que, nas universidades, as mulheres indígenas estão em número superior aos homens indígenas”.
Ocupando espaços predominantemente masculinos ou de pessoas brancas, Rosane fica feliz em ver mulheres indígenas mostrando sua potência e seu trabalho em diferentes áreas. “Esses postos sendo ocupados por indígenas mulheres mostram uma mudança de paradigma que só vem a contribuir e somar”, avalia.
De forma geral, não só com o povo indígena ou com os afro-brasileiro, Rosane avalia que o maior desafio ainda é o racismo. “Ele tem sido historicamente negado pelo próprio povo brasileiro. No entanto, e ainda se expressa institucionalmente, porque é estrutural. E o racismo ainda é uma barreira para que nós possamos acessar espaços fora das nossas comunidades. O grande desafio é esse, como pessoas que buscaram formações para além do que temos nas nossas comunidades, poder produzir uma intelectualidade que inspire as novas gerações e produza reflexões. Me sinto feliz em poder contribuir com a formação de pessoas mais atentas e sensíveis às questões da diversidade cultural”, finaliza.