- Enganoso
- É enganosa a publicação compartilhada em redes sociais sobre um estudo produzido na Alemanha que teria identificado a ausência de mortes por covid-19 entre crianças de 5 a 11 anos de idade, sem comorbidades, em dois anos de pandemia. O referido estudo traz, de fato, a informação, porém com um recorte temporal de março de 2020 a maio de 2021, ou seja, em um período de 14 meses. A análise da pesquisa, segundo os próprios autores, é limitada por ter sido feita com base em estimativas.
- Conteúdo verificado: Postagem no Twitter cita estudo alemão que teria identificado zero mortes por covid-19 de crianças consideradas saudáveis com idades entre 5 e 11 anos, em dois anos de pandemia, com críticas à vacinação do público infantil.
É enganosa a publicação feita no site Covidflix, e compartilhada no Twitter, sobre um estudo realizado na Alemanha que aponta não haver registro de mortes de crianças de 5 a 11 anos de idade no país por covid-19 desde o início da pandemia. O tuíte, de 9 de janeiro, cita jovens “saudáveis” em uma referência àqueles que não apresentam comorbidades.
O site covidflix.com diz divulgar notícias “sem a censura das redes e big-techs”, e traz uma série de citações à infectologista Dra. Roberta Lacerda. A médica é conhecida por defender tratamentos comprovadamente ineficazes contra o coronavírus e chegou a participar de uma audiência pública na Câmara de forma contrária à vacinação infantil no Brasil.
O tuíte é enganoso porque altera um dado da pesquisa com o objetivo de criticar a vacinação infantil contra a covid-19. A intenção do internauta é clara, já que, na postagem, ele escreve: “Vacinar crianças é um crime!!!”.
Leia mais:A informação distorcida se refere ao período de realização do estudo, que analisou números de três fontes diferentes em 14 meses, entre março de 2020 e maio de 2021. Portanto, não “em dois anos de covid”, como afirma o título da imagem que ilustra o tuíte.
O estudo aponta, de fato, a ausência de mortes por covid-19 na Alemanha entre crianças de 5 a 11 anos de idade, sem comorbidades, nos 14 meses analisados. Porém, segundo os próprios autores, há insegurança nas análises, pois os dados, apontados como inconsistentes pelos pesquisadores, foram considerados como estimativas. Além disso, os autores citam a alta subnotificação de casos de covid-19 em crianças como um impedimento para uma análise precisa dos riscos da doença no público infantil.
“A avaliação do risco absoluto entre crianças permanece difícil devido a uma alta taxa de casos não detectados. No entanto, sem números de casos mais precisos, análises de risco confiáveis são impossíveis”, aponta trecho do estudo, no primeiro parágrafo do texto.
Além de distorcer informações do estudo, o tuíte não menciona dados oficiais do governo alemão sobre a covid-19 em crianças e adolescentes. Segundo o Robert Koch Institute (RKI), órgão governamental que analisa os dados da pandemia na Alemanha, foram registradas 18 mortes por covid-19 no país na faixa etária entre 5 e 14 anos, desde o início da pandemia. No entanto, o dado não faz a diferenciação entre crianças com e sem comorbidades.
A pesquisa repercutida no tuíte foi publicada no site medRxiv.org, em 30 de novembro de 2021. O portal é usado para a pré-publicação de artigos científicos que ainda precisam de revisão por pares e, por isso, não podem ser usados como base para decisões clínicas.
Para o Comprova, é enganoso o conteúdo que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor.
Como verificamos?
Inicialmente, o Comprova fez uma busca pelo estudo citado na publicação do Twitter. O site de origem traz um texto traduzido do inglês de outro portal, o Brownstone – site que publica artigos contrários à vacinação – citando brevemente os resultados do estudo científico.
Na sequência, procuramos o Ministério da Saúde da Alemanha e o Instituto Robert Koch (RKI).
Entramos em contato também com a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) para obter esclarecimentos sobre a diferença entre covid-19 e PIMS-TS.
Paralelamente, pedimos dados à Sociedade Alemã de Pediatria Social e Medicina do Adolescente, à Academia Alemã de Medicina da Criança e do Adolescente, à Sociedade Europeia de Pesquisa Pediátrica e à Academia Americana de Pediatria. Houve retorno apenas da primeira instituição, que indicou o RKI como a fonte dos dados solicitados.
Já a universidade Johns Hopkins, que compila dados globais da pandemia, informou que só tem a segmentação de casos e mortes por idade referentes aos Estados Unidos.
Para confirmar os dados no Brasil, o Comprova fez contatos com o Ministério da Saúde e a SBP.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 19 de janeiro de 2022.
Verificação
O estudo alemão
O estudo repercutido no tuíte foi produzido por oito pesquisadores ligados a universidades alemãs, e teve o objetivo de avaliar os riscos de formas graves de covid-19 e mortes pela doença entre crianças e adolescentes na Alemanha, entre 0 e 17 anos.
Intitulada “Risco de hospitalização, doença grave e mortalidade por COVID-19 e PIMS-TS em crianças com infecção por SARS-CoV-2 na Alemanha”, a pesquisa considerou dados de três fontes, entre março de 2020 e maio de 2021, e foi publicada em 31 de novembro de 2021.
O estudo faz a diferenciação entre a covid-19 e a “Pediatric Inflammatory Multisystem Syndrome (PIMS-TS)” que, em português, é chamada de Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P) temporalmente associada à covid-19.
Ao Comprova, o pediatra infectologista Renato Kfouri, que é presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), afirmou que são enfermidades distintas, sendo a SIM-P uma complicação tardia da covid-19, que se manifesta quando o coronavírus não está mais presente no organismo.
Os pesquisadores alemães apontaram 14 mortes por covid-19 e nenhuma por PIMS-TS entre 0 e 17 anos. De 5 a 11 anos, foram 4 mortes por covid-19, mas todas, segundo o estudo, estão relacionadas a casos de crianças com comorbidades. Entre aquelas consideradas saudáveis, o estudo aponta ausência de mortes na faixa etária.
“Crianças saudáveis de 5 a 11 anos têm o menor risco, com uma taxa de admissão na UTI de 0,2/10.000 (habitantes). Devido à ausência de casos, sua taxa de letalidade não pode ser calculada”, diz trecho do estudo.
Ainda na faixa etária de 5 a 11 anos, o estudo aponta 89 hospitalizações para tratamento da covid-19. Dessas, 39 crianças necessitaram de cuidados intensivos em UTI.
Os dados aparecem nesta figura, que ilustra o estudo e considera casos de covid-19 e PIMS-TS de forma geral: de 0 a 17 anos, sem distinção entre crianças com e sem comorbidades. Os números considerados são os que constam no campo “Nc”. Segundo os pesquisadores, a sigla indica o dado ajustado diante das estimativas de subnotificação.
A pesquisa, no entanto, não foi revisada por pares e, segundo seus próprios autores, foi feita com base em estimativas, devido à imprecisão dos dados coletados nas três fontes consultadas e à subnotificação de casos de covid-19 na Alemanha envolvendo crianças, o que confere insegurança às análises.
O tuíte não faz essa ressalva, e distorce a informação de que não houve mortes por covid-19 na Alemanha entre crianças saudáveis de 5 a 11 anos ao alterar o lapso temporal do estudo, de 14 meses – entre março de 2020 e maio de 2021 – para “dois anos de covid”.
A identificação do estudo alemão
O tuíte verificado traz uma referência ao site Covidflix. Em pesquisa no Google com utilização dos termos “Mortes De Crianças Saudáveis” AND “estudo alemão” direcionada a essa página, encontramos a postagem que foi repercutida no Twitter. A foto e a grafia do título, com todas as palavras em letras maiúsculas, são as mesmas.
O texto da postagem aponta um link do portal Brownstone Institute como sendo a fonte da informação sobre o estudo alemão. O link direciona para uma publicação do site estrangeiro em que, na primeira linha, há um hiperlink para o estudo. A publicação é de 6 de dezembro de 2021, três dias antes da postagem do tuíte.
A imagem compartilhada na rede social apresenta, ainda, um texto que aponta suposta manipulação de dados, por “marionetes de Big Pharma”, sobre os riscos da covid-19 em crianças.
Em consulta sobre a expressão “Big Pharma” no Google, um verbete na wikipedia informa que o termo se refere à indústria farmacêutica mundial. E que a teoria da conspiração da Big Pharma representa um grupo de teorias da conspiração, segundo as quais as empresas farmacêuticas atuariam contra o bem público ao ocultar informações sobre doenças com o objetivo de obter lucros financeiros.
Dados da Alemanha
O tuíte, assim como as publicações nos dois sites, não cita dados oficiais do governo alemão sobre mortes de crianças por covid-19.
Questionado pelo Comprova sobre casos confirmados de covid-19 e mortes pela doença entre crianças de 5 e 11 anos, com e sem comorbidades, o Ministério da Saúde da Alemanha encaminhou boletim do Robert Koch Institute (RKI), de 6 de janeiro de 2022, que aponta 41 mortes por covid-19 entre 0 e 19 anos. Destas, 29 são vítimas com comorbidades.
Em relação a dados adicionais, o Ministério da Saúde da Alemanha sugeriu que o Comprova entrasse em contato com o RKI.
Ao Comprova, o RKI informou que a segmentação etária de seu banco de dados inclui a faixa entre 5 e 14 anos. Nesse segmento, o instituto contabiliza 18 mortes por covid-19 na Alemanha. Porém, o dado não faz a discriminação entre vítimas com e sem comorbidades.
Perguntados sobre essa segmentação, o RKI informou que ela está disponível apenas no boletim semanal do instituto, o mesmo que havia sido encaminhado anteriormente pelo Ministério da Saúde alemão.
Dados do Brasil
Na audiência pública sobre a vacinação infantil no Brasil, promovida pelo Ministério da Saúde, no dia 4 de janeiro, o secretário de Vigilância em Saúde, Arnaldo Medeiros, apresentou dados sobre casos e mortes de covid-19 entre crianças de 5 a 11 anos, com base no Sistema Sivep-Gripe.
No período de março de 2020 a dezembro de 2021, foram confirmados 6.324 casos de covid-19 e 311 mortes pela doença na faixa etária. Dos óbitos, cerca de 70% se tratam de crianças com comorbidades, ou 218 vítimas em número aproximado. Sem comorbidades, foram 30% das 311 mortes, ou cerca de 93 crianças.
Em 3 de janeiro deste ano, a Sociedade Brasileira de Pediatria emitiu um documento alertando para as taxas de mortalidade por covid-19 entre crianças e adolescentes, de 0 a 17 anos: no Brasil, são 41 mortes por milhão; nos Estados Unidos, 11 óbitos; e, no Reino Unido, 7. A entidade defende a vacinação para reduzir não só os casos e mortes pela doença, mas também para garantir o retorno seguro ao ambiente escolar.
Já em relação à Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P), o boletim epidemiológico nº 93 do Ministério da Saúde, de 1 de janeiro de 2022, aponta 1.434 casos confirmados e 86 mortes entre 0 e 19 anos. Dessas mortes, a predominância se deu na faixa etária entre 5 e 9 anos de idade: 24 casos, ou 27,9% do total.
Por que investigamos?
O Comprova tem o compromisso de investigar conteúdos suspeitos que tenham viralizado na Internet sobre pandemia, políticas públicas e eleições. No caso em questão, o post teve mais de 3,3 mil interações, entre curtidas, retweets e comentários.
Um dos compartilhamentos foi feito, inclusive, pela deputada federal Bia Kicis (PSL-DF), que tem mais de um milhão de seguidores no Twitter e é contrária à vacinação infantil contra a covid-19.
Informações enganosas sobre a vacinação prejudicam a continuidade da campanha de imunização contra o vírus. A eficácia e segurança das vacinas é comprovada por órgãos de saúde nacionais e internacionais.
Em verificações anteriores, o Comprova também mostrou que a proteção oferecida pela vacina supera o risco de miocardite em crianças e que é enganoso que vacina contra covid-19 tenha provocado aumento de morte de crianças.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Desde 2020 o Correio de Carajás integra o Projeto Comprova, que reúne jornalistas de 33 diferentes veículos de comunicação brasileiros para descobrir e investigar informações enganosas, inventadas e deliberadamente falsas sobre políticas públicas e a pandemia de covid-19 compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens.