VERIFICADO POR:
- Enganoso
- Os fragmentos de arroz são um subproduto apto para o consumo humano. Eles não são restos de comida e apresentam o mesmo valor nutricional que os grãos inteiros. Além disso, eles já eram comercializados antes do governo do presidente Jair Bolsonaro, e a marca que aparece na foto de uma das postagens não detectou nenhum aumento de produção ou vendas em 2020 ou 2021.
- Conteúdo verificado: Posts no Instagram e Twitter mostram sacos de arroz com um rótulo indicando que são fragmentos de arroz. Os posts dizem que esses grãos quebrados seriam “restos de comida”, com “valor nutricional reduzido”, usados para “compor rações de animais e fazer farinha de arroz” e que teriam começado a ser comercializados no governo de Jair Bolsonaro com um preço maior, devido à “miséria” e “fome” do país.
Não é verdade que os “fragmentos de arroz” sejam restos de comida e tenham começado a ser vendidos nos supermercados recentemente, já durante o governo Bolsonaro, como sugerem alguns posts que viralizaram.
Leia mais:Esse subproduto do arroz, formado por grãos que quebraram durante a etapa de polimento e que são separados dos inteiros, está regulamentado como apropriado para o consumo humano desde a Instrução Normativa de 2009, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), e tem valor nutricional similar ao do arroz inteiro, segundo especialistas ouvidos pelo Comprova.
Além disso, segundo a fabricante da marca que aparece na foto que acompanha um dos tuítes, Rampinelli Alimentos, os fragmentos são comercializados desde 2016 e indicados para receitas de sopas e caldos.
A empresa também afirmou que não foi percebido nenhum aumento recente no volume produzido de fragmentos de arroz no governo Bolsonaro e, portanto, nem no consumo.
O Comprova entrou em contato com os responsáveis pelas postagens, e um deles, @diogotapuio, nos respondeu, dizendo que o tuíte se refere ao aumento da fome e da pobreza no Brasil.
Como verificamos?
O Comprova consultou documentos oficiais do MAPA que regulamentam sobre o consumo humano de fragmentos de arroz e conversou com especialistas em alimentação e agricultura.
Fizemos contato também com a Associação Brasileira da Indústria do Arroz (Abiarroz), para saber mais sobre a venda desse subproduto no país, com a Apas (Associação Paulista de Supermercados) e Abras ( Associação Brasileira de Supermercados).
Além disso, a equipe procurou a empresa Rampinelli – que aparece nas postagens em uma foto que mostra vários sacos de fragmentos comercializados pela marca.
Pelas redes sociais, fizemos contato com os responsáveis pelas postagens verificadas, mas só um deles nos respondeu.
Verificação
O que são fragmentos de arroz
Os conteúdos enganosos indicam que os fragmentos de arroz seriam “restos de comida”.
A Instrução Normativa 6/2009 do MAPA – que define o padrão oficial de classificação do arroz, com os requisitos de identidade e qualidade –, prevê a comercialização dos fragmentos de arroz.
Ele é definido como “o produto constituído de, no mínimo, 90% de grãos quebrados e quirera”, sendo que os grãos quebrados são “o pedaço de grão de arroz descascado e polido que apresentar comprimento inferior às (três quartas) partes do comprimento mínimo da classe que predomina e que ficar retido na peneira de furos circulares de 1,6 mm de diâmetro” e quirera (menor parte do grão quebrado) que é “o fragmento de arroz que vazar na peneira de furos circulares de 1,6 mm de diâmetro”.
Dessa forma, o fragmento de arroz beneficiado é classificado em 4 subgrupos – integral, polido, parboilizado integral e parboilizado polido – e nas 2 categorias: grão quebrado e quirera, como mostra a imagem abaixo, retirada do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Vegetal, do MAPA:
A pesquisadora em Ciência de Alimentos da Embrapa Arroz & Feijão Priscila Zaczuk Bassinello reforça que os fragmentos de arroz não podem ser considerados “restos” nem “sobras”. “Restos são alimentos que já não podem ser reaproveitados. Quando a gente fala de sobras limpas são os alimentos prontos que não foram distribuídos e dependendo da quantidade podem ser também uma forma de desperdício. Não é o caso de fragmentos de arroz”, explica.
Segundo ela, a ocorrência dos fragmentos é algo normal e ocorre sempre, já que o grão tende a quebrar no processo até chegar na embalagem que vai ao mercado. “Dependendo do tipo de amido que tem no grão ele pode ser mais frágil, depende do manejo, da genética da cultura. Então, essa quebra faz parte de grande parte dos cultivares que temos no mercado e sempre você tem uma porcentagem de quebra. Já se espera, pelo menos, de 30 a 40% de perda com grãos quebrados em qualquer cultivo”, explica.
Carlos Magri Ferreira, agrônomo e analista da Embrapa Arroz e Feijão, afirma que o fragmento de arroz é um subproduto e a origem dele pode ser em função da forma de cultivo, condições climáticas durante o ciclo da cultura, ação física no grão, problemas na secagem ou no beneficiamento. “O grão quebrado reduz o preço do arroz. Dessa forma, pesquisas na área são realizadas para reduzir o aparecimento deste”, explicou.
Os fragmentos são menos lucrativos para os produtores. Priscila afirma que a indústria que compra o arroz e vai empacotar paga o preço em função do rendimento industrial. “Quanto mais quebrados, menos eles pagam por aquele material. No mercado se define a porcentagem aceitável de grãos inteiros, eles falam em, no mínimo, 65% de inteiros do arroz.”
A Rampinelli Alimentos ressaltou que o produto vendido como “fragmento de arroz” é classificado pelo MAPA na categoria “quebrado”, tipo 1 – informações que estão na embalagem.
Segundo a Abiarroz, “a quantidade de fragmento de arroz produzida no Brasil não chega a 10% do total da produção (cerca de 1 milhão de toneladas)”.
Consumo humano
Os posts que estão viralizando indicam que os fragmentos de arroz seriam usados “para compor rações e fazer farinha de arroz” e estariam ligados à “miséria” e à “fome”.
Apesar de serem usados para ração animal e para fazer farinha de arroz, Priscila destaca que não dá para confundir fragmentos com aquilo que é abaixo do padrão e desclassificado para consumo humano.
“Não é apto para consumo humano quando o arroz está em mau estado de conservação, com presença de mofo, odor estranho ou com substâncias nocivas à saúde. Isso tudo não tem relação com o fato de eles serem quebrados. A quebra pode acontecer com qualquer um dos tipos, qualquer classe, porque isso depende de manejo pós-colheita. Não há problema nenhum em se comercializar e consumir um grão de arroz quebrado. Não é considerado um defeito”, explica.
Ferreira destaca que a preferência do consumidor é definida por questões sociais, religiosas, econômicas e culturais e que o brasileiro é exigente e, normalmente, não aceita comprar arroz quebrado. “O padrão médio desejado pelo consumidor brasileiro é pelo arroz longo fino, polido, que, após o cozimento, fique macio, seco e solto. A marca comercial e tipo 1 são fatores predominantes na decisão de compra. Talvez seja o produto que o brasileiro mostre-se mais exigente para servir seja para a família ou convidados”, explica.
Para Priscila, deve-se levar em consideração o mercado para o qual o arroz será vendido. Alguns países valorizam o arroz fragmentado, principalmente na África, em que já é hábito consumir os grãos quebrados. Segundo ela, países africanos têm receitas específicas para esse arroz. Em contraposição, outros mercados só toleram menos de 10% de teor de quebrados no pacote. “A preferência varia e a qualidade pode ser boa para alguns e ruim para outros, depende dos hábitos alimentares daquela cultura. Os fragmentos também podem ser misturados com porcentagens de arroz inteiro em alguns países que aceitam esse tipo de mistura, principalmente importadores de baixa renda”, afirma.
O arroz especial e os fragmentos de arroz representam cerca de 1% do consumo total da cultura no Brasil, segundo a Abiarroz. De acordo com a associação, a maior parte da produção brasileira desse tipo de grão é comercializada para países africanos, onde há o hábito de consumo do arroz quebrado.
Em resposta ao Comprova, a Rampinelli Alimentos disse que o produto chamado de “fragmento de arroz” é indicado para receitas de sopas, minestras e caldos e não é vendido para consumo animal. A empresa fabrica outro produto para a alimentação de cães, comercializado com o nome “Arroz Luppy”, que é feito à base de arroz.
Valor nutricional
Um dos conteúdos enganosos afirma que os fragmentos de arroz tem “valor nutricional reduzido”.
Segundo a nutricionista, professora da área de Tecnologia de Alimentos da Federal de Pernambuco (UFPE) e consultora da Associação Brasileira de Nutrição(Asbran), Viviane Lansky Xavier, os fragmentos de arroz têm o mesmo valor nutricional que os grãos inteiros, sendo que a diferença está na estrutura física.
Na entrevista ao Comprova, para exemplificar, ela disse que comparou os dados dos produtos da marca Rampinelli: o fragmento de arroz polido apresenta 80g de carboidratos e 6g de proteínas por 100g de produto. Já o arroz polido inteiro apresenta o mesmo teor de carboidratos (80g) e 6,6g de proteína por 100g de produto. Ou seja, a variação no teor de proteínas não chega nem a 1g por 100g de produto.
“Há pequenas variações nesses valores entre uma marca e outra, depende de como a empresa fez a informação nutricional que está no rótulo, mas, na comparação, não há tanta diferença assim. Temos que lembrar também que, quando pensamos numa alimentação saudável, o arroz está no grupo de alimentos energéticos, ou seja, aqueles que são as fontes de carboidratos. Quanto ao teor deste nutriente, não há diferença entre os produtos”, explica.
Ela ressalta que é hábito alimentar de se consumir o arroz inteiro, enquanto que o fragmento, historicamente, é destinado a alimentação animal, pois o valor comercial sempre foi menor. “A própria embalagem do fragmento de arroz geralmente indica a forma de consumo: ideal para sopas, canjas etc. É a mesma coisa do milho, tem o inteiro e o quebrado, chamado de quirera também, ou xerém. É usado na alimentação animal, mas também na alimentação humana”, afirma.
Priscila destaca que como o arroz só foi quebrado ele preserva a mesma constituição nutricional do grão que lhe deu origem, mudando apenas a estrutura física. “Ele preserva as mesmas propriedades nutritivas do arroz inteiro. O que pode alterar é a qualidade culinária, que pode tender a empapar mais do que o grão inteiro”, comenta.
Comercialização e governo Bolsonaro
Uma das postagens afirma que “no Brasil de 2021, fragmento de arroz é vendido nos mercados”, como se o produto nunca tivesse sido comercializado antes. A outra diz “eu não sei se vocês tem noção, mas fragmento de arroz não era comercializado”, e afirma que, antes desse ano, o quilo do produto custava R$1. Os dois tuítes são acompanhados de uma foto, que mostra o pacote de 5kg dos “fragmentos de arroz” da marca Rampinelli, sendo vendido a R$15,99 em um supermercado.
As afirmações não procedem. A norma do MAPA sobre a classificação desse subtipo de arroz é de 2009, como já mencionado. “Existe essa classificação normatizada no Ministério da Agricultura. Sempre existiu no Brasil e a classificação existe de longa data, desde a década de 80”, diz Priscila Zaczuk Bassinello.
Já o produto da Rampinelli começou a ser vendido em 2016, bem antes de Jair Bolsonaro se tornar presidente do Brasil. Ao Comprova, a empresa disse que a ideia foi criar um produto voltado para o preparo de caldos e sopas: “o fragmento entra no catálogo de produtos da Rampinelli para agregar ainda mais a diversidade de receitas. Sendo assim, ele NÃO é um substituto dos demais produtos”.
De lá pra cá, as vendas nunca corresponderam a mais de 1,2% das vendas totais da empresa, como mostra a tabela abaixo, enviada ao Comprova:
Além disso, segundo a Rampinelli, não foi percebido nenhum aumento recente nesse volume – e, portanto, nem no consumo.
A Abiarroz disse que, por causa da falta de costume dos brasileiros em consumir o arroz quebrado, ele não é encontrado com facilidade em todos os supermercados. “Nos estados do Sul do país, onde se tem costume de comer caldo, sopa, canja, minestra, especialmente com clima mais frio, é mais facilmente encontrado. A percepção de indústrias que comercializam fragmento de arroz é de que houve queda no consumo deste produto, desde 2016”, afirma a associação.
O Comprova não conseguiu localizar uma média de preços do fragmento de arroz nos últimos anos. A Rampinelli disse que, em comparação com outros produtos, o fragmento realmente é comercializado a um preço mais baixo, mas que “não é responsável pela formação do preço de venda ao varejo, este é o próprio supermercado/atacadista que faz”.
O Comprova também procurou a Apas que disse que possui uma base de dados provenientes de parceiros, como a Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), com cerca de 200 produtos. No entanto, o arroz fragmentado não existe nas análises, pois há uma representação ínfima no setor supermercadista do estado de São Paulo. Dessa forma, não há uma base de dados para comparar os preços deste produto.
Procuramos a Associação Brasileira de Supermercados, que disse que não conseguiria atender nossa solicitação.
Já a Abiarroz afirma que o preço do fardo de arroz quebrado geralmente equivale a 24% do valor do arroz polido – que é mais consumido no país. “A alteração de preço é proporcional ao preço do arroz Tipo 1, uma vez que, muitas vezes, sequer se tem a matéria-prima para fragmento de arroz em função da qualidade do arroz brasileiro, que apresenta grande percentual de grãos inteiros”, diz a nota enviada ao Comprova.
O preço médio do arroz mais comumente usado nos lares brasileiros subiu 61% no país, entre maio de 2020 e maio de 2021, durante a pandemia, segundo dados da Fundação Getulio Vargas (FGV).
O que diz quem publicou o conteúdo
O conteúdo enganoso foi publicado no Twitter pelos usuários @diogotapuio e @astrafito. O post de Diogo ainda foi compartilhado no Instagram pela página “Esquerda Pensante”.
O Comprova tentou contato com os três, mas só Diogo Cabral nos respondeu, dizendo que a postagem está relacionada aos níveis alarmantes de insegurança alimentar no Brasil.
“O tuíte ilustra uma grave situação que temos atravessado no país: a fome”, nos escreveu ele, por mensagem no Instagram. Diogo mencionou ainda os dados de aumento da insegurança alimentar e da desigualdade no país. Não informou, porém, se sabia quando o fragmento de arroz começou a ser comercializado.
De fato, o Brasil uma pesquisa de abril da organização humanitária Oxfam, que atua em todo o mundo, apontou que mais de 19 milhões de brasileiros passaram fome durante a pandemia da covid-19.
Também é verdade, segundo uma pesquisa da FGV, que o número de brasileiros em situação considerada de extrema pobreza — ou seja, vivendo com menos de R$246 mensais — aumentou desde o começo de 2020. Antes da pandemia, em 2019, o índice chegava a 10,97%, mas, com o pagamento do auxílio emergencial mais amplo no ano passado, havia caído, em agosto, para 4,25%. Em fevereiro, com as mudanças no pagamento do benefício, o índice voltou a subir e ultrapassou o período pré-pandêmico, chegando a 12,83% — o que corresponde a 27,2 milhões de pessoas.
Apesar disso, os números não estão relacionados à venda dos fragmentos de arroz em supermercados.
Por que investigamos?
Em sua quarta fase, o Comprova checa conteúdos suspeitos sobre o governo federal ou a pandemia de covid-19 que tenham atingido alto grau de viralização. Em julho de 2021, os participantes decidiram também iniciar a verificação da desinformação envolvendo possíveis candidatos à presidência da República. Desde então, o projeto tem monitorado nomes que vêm sendo incluídos em pesquisas dos principais institutos.
Os posts verificados nessa checagem atingiram mais de 57 mil interações no Twitter e Instagram e, ainda que a intenção dos autores tenha como base informações verdadeiras – aumento da fome e da pobreza no país –, a venda do fragmento de arroz não tem relação com esse cenário.
Além disso, o conteúdo engana ao indicar que esses produtos não seriam apropriados para consumo humano e ao relacionar a comercialização dos fragmentos como consequência do governo Bolsonaro.
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Desde 2020 o Correio de Carajás integra o Projeto Comprova, que reúne jornalistas de 33 diferentes veículos de comunicação brasileiros para descobrir e investigar informações enganosas, inventadas e deliberadamente falsas sobre políticas públicas e a pandemia de covid-19 compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens.