Correio de Carajás

Urnas brasileiras não foram hackeadas nos EUA

Falso
Urnas brasileiras não foram hackeadas em conferência nos Estados Unidos, e trecho do programa Estúdio i, da GloboNews, não prova que os equipamentos usados nas eleições brasileiras são inseguros.
  • Conteúdo verificado: Em vídeo publicado no Facebook e no YouTube, homem usa trechos de um programa do canal GloboNews em que eram discutidos os resultados de uma conferência hacker que testou a segurança das urnas eletrônicas dos Estados Unidos para dizer que os equipamentos usados nas eleições brasileiras não são seguros.

É falso que urnas brasileiras tenham sido hackeadas durante uma conferência hacker nos Estados Unidos, e que isso provaria falhas no sistema eleitoral usado no Brasil.

O autor de um vídeo publicado no YouTube e no Facebook tira de contexto um vídeo de 2017, com um trecho do programa Estúdio i, do canal pago GloboNews, para afirmar que “Bolsonaro tem razão”. Na reportagem, o advogado e diretor científico do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio), Ronaldo Lemos, comenta o resultado do trabalho de hackers durante a DEF CON 2017, maior conferência hacker do mundo, que, naquele ano, avaliou a segurança de urnas eletrônicas usadas nos Estados Unidos.

Como explicitado na fala do especialista, e ao contrário do que afirma o autor do vídeo, Felipe Lintz, os equipamentos testados não são os mesmos usados no processo eleitoral brasileiro. Em artigo recente, o próprio Ronaldo Lemos contesta o uso de sua fala na ocasião, que vem sendo utilizada fora de contexto para desinformar a respeito do processo eleitoral brasileiro.

Leia mais:

Procurado pelo Comprova, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) reafirmou, em uma nota publicada em 2017, que as vulnerabilidades encontradas nos equipamentos americanos foram em conexão com a internet ou em tecnologias que não são usadas nas urnas eletrônicas brasileiras.

O Comprova tentou contato com Lintz pelo e-mail fornecido na descrição da página “O jacaré de tanga”, no YouTube, mas não tivemos retorno até a publicação desta checagem.

Como verificamos?

Através de uma busca no Google, encontramos o vídeo original exibido pela GloboNews no site da emissora. Contatamos Ronaldo Lemos, especialista ouvido pelo canal por meio do WhatsApp. Ele nos encaminhou o link de um artigo escrito por ele em que rebate as alegações em relação ao programa. Também procuramos a assessoria de imprensa do TSE para saber se os aparelhos testados nos EUA eram utilizados no Brasil. Verificações publicadas anteriormente pelo Comprova nos ajudaram a identificar quais empresas já venderam urnas eletrônicas para a Justiça Eleitoral brasileira.

Buscamos no Google o nome do homem que apresenta o vídeo e descobrimos que ele foi candidato a prefeito de Mogi da Cruzes nas eleições de 2020. Enviamos e-mail para o endereço de contato que consta na página, mas não tivemos resposta até a publicação deste texto.

Verificação

O programa

A edição do Estúdio i citada no vídeo foi ao ar no dia 7 de agosto de 2017. O Comprova conseguiu reencontrar o vídeo da conversa no site da GloboNews.

Antes de falar sobre as urnas eletrônicas, o programa exibiu uma matéria sobre uma maratona hacker (também chamada de hackathon) promovida pela Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) em parceria com a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) nos dias 5 e 6 daquele mês. No evento, programadores se reuniram para desenvolver soluções utilizando inteligência artificial para combater a corrupção ou casos de pornografia infantil. O evento teve cobertura da Rede Globo. É a esse evento que a apresentadora Cecília Flesch se referia quando ela cita “hackers trabalhando para o bem”.

Em seguida, o programa começa a abordar a realização de testes em urnas eletrônicas nos EUA durante a DEF CON, maior conferência hacker do mundo, que ocorre em Las Vegas. Em 2017, foi a primeira vez que a segurança de urnas eletrônicas foi testada no evento. Os modelos que estavam lá foram violados dentro de duas horas.

As urnas eletrônicas utilizadas pelos participantes da DEF CON 2017 não eram as mesmas usadas nas eleições brasileiras. Na própria entrevista com Ronaldo Lemos, cujo trecho em áudio o youtuber usa no vídeo, o especialista explica: “A gente tem que lidar com calma com essa situação, porque também, depois, as pessoas ficam achando que isso tem a ver com o Brasil; não, isso aconteceu nos Estados Unidos, com alguns modelos, e não é claro se o modelo da urna brasileira, específico, foi uma dessas que foram testadas ou não.”

Em 2017, portais brasileiros e americanos noticiaram a conferência, antes e depois dos resultados. Todos os textos explicam que os equipamentos testados foram os usados nos Estados Unidos.

O especialista convidado para comentar os resultados da conferência é o advogado Ronaldo Lemos, diretor científico do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio) e apresentador do programa Expresso Futuro, no Canal Futura.

Em maio deste ano, ele escreveu um artigo no jornal Folha de S. Paulo em que contesta o uso do vídeo desse programa como argumento para adoção do voto impresso no Brasil. No texto, ele fala que nenhuma das urnas testadas foi a brasileira e que, desde 2017, o TSE tem atuado para dar mais segurança e transparência à utilização das urnas. Ele também argumenta que a logística necessária para fazer um ataque capaz de alterar o resultado da eleição é tão grande que a chance de alguém conseguir fazê-lo “é zero”. Para ele, a possibilidade de fraudar a eleição seria maior se a votação fosse de papel.

Urnas brasileiras não têm as vulnerabilidades identificadas nos EUA

Na época em que aconteceu a conferência, o TSE divulgou uma nota explicando que apenas urnas usadas nos EUA foram testadas. As vulnerabilidades encontradas foram em conexão com a internet (no caso da urna WinVote) ou através de portas de depuração (acesso e testagem) da placa-mãe que utilizavam a tecnologia JTAG. Nenhuma dessas tecnologias é usada nas urnas eletrônicas brasileiras.

Neste ano, o Tribunal preparou um vídeo sobre o tema, para a série “Fato ou Boato”. Em uma publicação sobre o conteúdo, no site oficial, o TSE explica que “não é possível comparar o sistema norte-americano com o brasileiro, uma vez que os dois operam de formas distintas. No Brasil, os programas utilizados na urna eletrônica são assinados digitalmente e lacrados em uma cerimônia pública. Se houver qualquer tentativa de adulteração do software, o equipamento nem sequer começa a funcionar. Uma invasão hacker também é uma hipótese improvável, pois a urna brasileira é um dispositivo isolado, sem conexão com a internet.”

O texto se baseia em outra peça de desinformação que circulava sobre o tema e falava sobre os mecanismos de impressão do voto para confirmação do resultado. Segundo o TSE, foram realizados “diversos testes para a implementação do módulo impressor do voto”, sendo que o primeiro ocorreu durante as Eleições de 2020. Foram constatadas, porém, diversas falhas nesse processo, que atrasaram a votação e violaram o sigilo do voto, já que foi preciso intervenção de outras pessoas para correção dos problemas mecânicos nas impressoras.

É importante ressaltar, ainda, que um dos aparelhos testado durante a DEF CON pertencia à empresa Diebold, que já produziu urnas eletrônicas para o Brasil em várias ocasiões entre os anos de 2000 e 2015, como mostra essa verificação do Comprova. “Sobre a Diebold, embora a empresa tenha fabricado as urnas brasileiras nos últimos anos, ela segue um projeto genuinamente nacional, desenvolvido pelo TSE e aberto em edital público de licitação. Assim, a empresa não pode vender a urna brasileira nos EUA e nem tampouco adotar as tecnologias de seus produtos na nossa urna, sendo obrigatório seguir o projeto brasileiro”, afirmou o TSE na nota divulgada após a conferência.

A empresa Smartmatic, citada no vídeo verificado aqui, não é mencionada nenhuma vez durante o programa da GloboNews. Ela também nunca forneceu urnas eletrônicas para a Justiça Eleitoral brasileira. Os testes realizados na DEF CON em 2017 foram acompanhados de perto por dois técnicos do TSE.

O autor do vídeo

O homem que aparece no vídeo fazendo críticas em relação às urnas eletrônicas se chama Felipe Lintz. Ele foi candidato a prefeito de Mogi das Cruzes, em São Paulo, pelo PRTB. Terminou a eleição em quarto lugar, com 16.971 votos. De acordo com o sistema de divulgação de Candidaturas e Contas Eleitorais (DivulgaCandContas) do TSE, ele tem 26 anos e não há registro de que tenha disputado eleições anteriores. Ele também não declarou sua ocupação à Justiça Eleitoral.

O Comprova enviou e-mail para o endereço de contato disponível na página no dia 9 de julho, uma sexta-feira. Na segunda, dia 12, o vídeo não estava mais disponível para o público no YouTube e não era mais possível encontrá-lo na página do Facebook.

Por que investigamos?

Atualmente em sua quarta fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos sobre políticas públicas do governo federal e a pandemia de covid-19 que tenham viralizado nas redes sociais. Publicações que questionam a segurança das urnas eletrônicas são importantes de serem checadas porque colocam em risco a confiança dos cidadãos nas eleições diretas.

O vídeo verificado pelo Comprova teve 513 mil visualizações no Facebook e foi assistido 147 mil vezes no YouTube, pelo menos até o dia 9 de julho.

Estadão Verifica e a Agência Lupa já verificaram o mesmo conteúdo e o classificaram como fora de contexto e falso, respectivamente.

Anteriormente, o Comprova também já mostrou que o sistema de votação eletrônica pode ser auditado; que a Smartmatic nunca vendeu urnas para o Brasil; e que o resultado de uma enquete sobre o voto impresso não reflete a opinião da população.

Para o Comprova, falso é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.

Desde 2020 o Correio de Carajás integra o Projeto Comprova, que reúne jornalistas de 33 diferentes veículos de comunicação brasileiros para descobrir e investigar informações enganosas, inventadas e deliberadamente falsas sobre políticas públicas e a pandemia de covid-19 compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens.