- Enganoso
- É enganoso o tuíte que afirma ter sido uma estratégia do governo não ter assinado um contrato com a Pfizer ainda em 2020. Além da falta de evidências da adoção de uma ação do tipo pelo Ministério da Saúde, epidemiologistas afirmam que o mais importante era iniciar a imunização contra o coronavírus o mais cedo possível, e lembram que mais doses poderiam ter sido compradas em contratos futuros – como, de fato, ocorreu.
- Conteúdo verificado: Tuíte diz que o governo federal não assinou o contrato com a Pfizer, no ano passado, para a aquisição de 70 milhões de doses da vacina contra o coronavírus, em favor do acordo fechado neste ano, que prevê a entrega de 100 milhões de doses até setembro.
É enganosa uma mensagem publicada no Twitter que sugere que o Governo Federal recusou propostas de aquisição de vacinas da Pfizer em 2020 como estratégia para obter um contrato com cronograma de entregas mais vantajoso em 2021.
Não há evidências de que a recusa de uma oferta da farmacêutica em dezembro e a ausência de manifestação do Ministério da Saúde sobre propostas anteriores tenham contribuído para a pasta antecipar o recebimento de um volume maior de vacinas até setembro deste ano.
A companhia, que aumentou seu potencial produtivo do imunizante em 2021, também antecipou o cronograma de entregas de doses para os Estados Unidos e a União Europeia. Registros públicos indicam que o principal impasse nas discussões entre a Pfizer e o governo no fim do ano passado foram as cláusulas de contrato propostas pela empresa.
Leia mais:A publicação ainda omite que, em agosto do ano passado, a Pfizer chegou a ofertar lotes programados para dezembro e um volume maior de doses no primeiro semestre de 2021, se comparado ao contrato assinado pelo Ministério da Saúde.
Epidemiologistas ouvidos pelo Comprova afirmam que vidas poderiam ter sido salvas caso a imunização contra o coronavírus tivesse sido iniciada mais cedo. Eles ressaltaram que o governo poderia ter reforçado as compras em contratos futuros – como ocorreu recentemente.
O Ministério da Saúde e o autor do tuíte foram procurados pelo Comprova, mas não responderam aos nossos contatos até a publicação desta checagem.
Como verificamos?
Buscamos, em matérias publicadas por diversos veículos de comunicação desde o começo do ano, informações sobre o processo de compra dos imunizantes produzidos pela Pfizer. A ideia foi entender a cronologia da negociação com a farmacêutica.
Depois, acessamos material publicado na imprensa sobre as declarações a respeito do assunto que estão sendo dadas por testemunhas ouvidas na Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado, para tentar esclarecer pontos que ainda não são totalmente claros nesta negociação.
Também ouvimos dois epidemiologistas para entender as possíveis consequências de se ter adiado o início da vacinação.
Por fim, contatamos o Ministério da Saúde e o autor da postagem no Twitter, @LorenzonItalo, que não nos responderam até a publicação deste texto.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 21 de maio de 2021.
Verificação
“Cláusulas leoninas”
Ao dizer que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) recusou um contrato de 70 milhões de doses de vacina até em prol de um contrato de 100 milhões de doses, o post omite que um dos principais impasses nas negociações entre a Pfizer e o Governo Federal em dezembro foram as cláusulas dos contratos apresentados pela farmacêutica.
Após a empresa comentar publicamente as negociações frustradas em janeiro, o governo publicou uma nota em que acusou a companhia de adotar “cláusulas leoninas” no contrato, como um dispositivo que eximia a responsabilização da farmacêutica por possíveis efeitos colaterais ligados à vacinação.
Discursos do presidente Jair Bolsonaro reforçam que as cláusulas foram um ponto sensível da negociação. “Lá, na Pfizer, tá bem claro no contrato: nós não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral. Se você virar um jacaré, é problema de você”, afirmou Bolsonaro, durante pronunciamento em dezembro.
O comunicado de janeiro do governo cita que o número de doses iniciais era baixo e causaria “frustração em todos os brasileiros”. A proposta, no entanto, previa quase o mesmo número de doses até o segundo trimestre se comparada à oferta da farmacêutica realizada em fevereiro deste ano, que foi atualizada pela empresa em março e finalmente aceita pelo governo brasileiro. Não há evidência, portanto, de que, como quer fazer crer o tweet verificado, o governo não fechou o contrato no fim de 2020 porque a quantidade de vacinas oferecida era menor que o desejado.
Em janeiro, segundo uma matéria do Estadão, o governo federal deixou de incluir em uma Medida Provisória (1.062/2021) um dispositivo que permitia que a União se responsabilizasse por possíveis efeitos colaterais da aplicação dos imunizantes. A cláusula faz parte dos contratos que a Pfizer firmou com vários outros países que adquiriram as vacinas contra a covid-19, assim como a exigência de garantias por parte do governo brasileiro — trecho que também foi suprimido da versão original da MP. Um outro texto legal, com previsões similares ligadas à responsabilidade civil e que autorizou que o governo federal fechasse o primeiro acordo com a farmacêutica só foi sancionado em 10 de março.
Aumento de produção
Com mais de 12 mil interações no Twitter, a publicação enganosa afirma que “Bolsonaro recusou um contrato de 70 milhões de doses de vacina até dezembro/21 em prol de um contrato de 100 milhões de doses até SETEMBRO/21.”.
As propostas iniciais da Pfizer ao governo brasileiro de fato previam a entrega de 70 milhões de doses até o fim de 2021. Também é verdade que o contrato assinado em março deste ano estabeleceu um cronograma com 100 milhões de vacinas até o terceiro trimestre. O que o boato não menciona é que a farmacêutica expandiu sua capacidade produtiva do imunizante e também ofereceu melhores prazos de entrega para outros países.
O post analisado pelo Comprova remete a uma oferta da Pfizer de 70 milhões de doses realizada em novembro de 2020 e discutida com o Ministério da Saúde no mês seguinte. Recusada pelo governo, a proposta estipulava a entrega de 2 milhões de doses no 1º trimestre de 2021; 6,5 milhões no 2º trimestre; 32 milhões no 3º trimestre; e 29,5 milhões no 4º trimestre, conforme revelou a farmacêutica.
Antes disso, a empresa havia oferecido, em agosto, três ofertas com seis opções de compras divididas em 30 milhões e 70 milhões de doses. Todas foram ignoradas pela pasta, segundo depoimentos na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o enfrentamento da pandemia no Brasil.
As condições da proposta de novembro são semelhantes às de um outro contrato oferecido pela Pfizer em fevereiro deste ano. Depois, outros prazos de entrega foram oferecidos ao governo brasileiro e o contrato com a farmacêutica foi assinado em março. A diferença é que a última oferta envolve um volume de mais 200 mil doses até o primeiro semestre e mais 30 milhões de unidades adicionais nos últimos três meses do ano – o que resultou na quantidade total de 100 milhões de vacinas.
A proposta da Pfizer finalmente aceita pelo governo tem mais doses não porque o governo brasileiro recusou a primeira oferta, mas sim porque a empresa ampliou sua capacidade de produção.
Uma matéria do Estadão mostra que em 8 de março a Pfizer apresentou um novo cronograma que atualizou a previsão de entrega de 8,7 milhões de doses, para 14 milhões de unidades até o segundo semestre. A CNN Brasil informou que na mesma reunião a farmacêutica se comprometeu a antecipar para setembro a conclusão da entrega de todas as 100 milhões de doses. Essas condições estão presentes no acordo assinado pelo governo federal com a farmacêutica em 18 de março.
Ainda na mesma reunião, o ministro da economia Paulo Guedes disse que a farmacêutica teria anunciado no evento um aumento da produção diária da vacina de 1,5 milhão, para 5 milhões de doses. Em janeiro, a Pfizer já havia ampliado a previsão de fabricação anual de doses de 2021 em 750 milhões, totalizando 2 bilhões de doses do imunizante.
Conforme matéria da revista Veja, a iminente inauguração de uma nova fábrica em Marburgo, na Alemanha, corroborou com o anúncio. Em março, alguns dias depois de ter fechado o contrato de 100 milhões de doses com o Brasil, a empresa ampliou a meta novamente, dessa vez para 2,5 bilhões de vacinas.
A expansão da capacidade produtiva do imunizante também resultou na antecipação do cronograma de entregas de vacinas para outras nações. Em abril, a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, informou que a farmacêutica antecipou para setembro a entrega de 50 milhões de doses à União Europeia anteriormente previstas para o último trimestre de 2020.
O presidente da Pfizer também anunciou adiantamentos no cronograma de entregas do imunizante aos Estados Unidos.
Vacinação antecipada faria diferença
A publicação analisada pelo Comprova também não menciona que a Pfizer, em agosto do ano passado, ofereceu ao menos três propostas de 70 milhões de doses com entregas previstas para 2020.
Uma oferta efetuada em 26 de agosto estipulava remessas de 1,5 milhão de doses ainda no ano passado, 17 milhões até o segundo trimestre de 2021, e outras 51,5 milhões até dezembro. Em vias de comparação, o acordo assinado em março pelo Governo Federal define a entrega de 4,5 milhões de doses a menos até junho na comparação com a proposta anterior da Pfizer, embora estabeleça um volume maior a longo prazo.
Para o professor de epidemiologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Pedro Hallal, a narrativa da publicação é “absolutamente ridícula” e ignora os benefícios da vacinação precoce. Segundo o cientista, quanto mais rápido fosse o início da imunização, melhor seria o impacto no combate à pandemia no país.
De acordo com Hallal, o início precoce da vacinação poderia, por exemplo, diminuir a intensidade da curva epidemiológica observada entre a metade de fevereiro e a metade de abril. Somente neste período, foram confirmadas mais de 130 mil mortes por covid-19 no Brasil, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde.
Ele ressalta que “nada impediria que assinado o [contrato] de 70 milhões lá atrás, a Pfizer tivesse ampliado a produção e ofertasse um novo, de 100 milhões esse ano”. Uma situação semelhante, inclusive, ocorreu na semana passada.
O Ministério da Saúde anunciou um segundo acordo com a Pfizer para aquisição de mais 100 milhões de vacinas. A nova reserva vai somar com a mesma quantidade de doses já contratadas em março pelo Governo Federal, totalizando 200 milhões de unidades, sem prejudicar o acordo anterior.
Também ouvido pelo Comprova, o epidemiologista e professor emérito da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais José Geraldo Leite Ribeiro ressaltou que seria preferível iniciar a imunização o mais cedo possível. “Quanto mais rápido aplicarmos a segunda dose nas pessoas, mais rapidamente nós vamos diminuir pelo menos a hospitalização [de pacientes infectados]”, disse.
Impacto
Uma matéria da Folha, publicada em 13 de maio, cita uma estimativa feita por Pedro Hallal, a pedido do veículo, sobre o impacto das 4,5 milhões de doses que seriam entregues pela Pfizer ao Brasil entre dezembro e março, caso o País tivesse aceito as primeiras propostas da farmacêutica.
O cálculo indica que até 14 mil mortes poderiam ter sido evitadas, dentro de uma margem de erro de 5 mil a 25 mil óbitos. A vacinação precoce também poderia ter impedido 30 mil internações em unidades de terapia intensiva (UTI). Neste caso, a margem de erro varia entre 23 mil e 37 mil ocorrências.
Para chegar às estimativas, Hallal considerou uma taxa de letalidade do coronavírus em 1% e a taxa de eficácia da vacina de 94%, além da hipótese de que até um terço da população já apresentaria anticorpos contra o vírus.
Já uma estimativa feita pela Universidade de São Paulo (USP), em parceria com o UOL, aponta que se o acordo de compra de doses tivesse sido fechado no ano passado, o país teria quase 22% da população vacinada pelo menos uma vez contra a covid-19 – um aumento de mais de 8 milhões de pessoas em relação ao número atual de vacinados — 37.729.214, até 20 de maio, segundo dados do Ministério da Saúde.
Considerando dados do consórcio de veículos de imprensa, o número é menor, mas ainda corresponde a 18,84% da população.
Por que investigamos?
O Comprova verifica conteúdos suspeitos que viralizaram nas redes sociais e que tratam da pandemia da covid-19 e de políticas públicas do governo federal.
Tuítes enganosos como o do usuário @lorenzonitalo, que teve mais de 13 mil interações na plataforma, são perigosos por distorcerem a real política de imunização e os esforços que foram ou não adotados pelo governo federal para garantir a compra de vacinas contra o novo coronavírus.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor, bem como aquele que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Desde 2020 o Correio de Carajás integra o Projeto Comprova, que reúne jornalistas de 28 diferentes veículos de comunicação brasileiros para descobrir e investigar informações enganosas, inventadas e deliberadamente falsas sobre políticas públicas e a pandemia de covid-19 compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens.