Quando Dayanny Cândido Cosse, de 34 anos, entrou no setor hospitalar, após sete anos da graduação em enfermagem, era difícil imaginar o que estava por vir. Era fevereiro de 2020 quando a tocantinense de Xambioá começou a trabalhar em dois hospitais: um da rede pública e outro da rede particular em Parauapebas. Mal sabia ela o que lhe esperava nos próximos 15 meses.
“Foi um susto, um baque muito grande. Ninguém sabia como lidar com a proporção do vírus”, conta, assombrada com os primeiros impactos do coronavírus, a maior pandemia do mundo desde a gripe espanhola, no início do Século XX. “Atendemos o primeiro paciente e ele veio a óbito; outro médico, colega nosso de trabalho e muito conhecido na cidade, também faleceu. Nesse momento caiu a ficha: é pior do que a gente imaginava”.
Dayanny relata que ainda estava aprendendo a lidar com o ambiente hospitalar quando o vírus se espalhou por Parauapebas, mas que mesmo assim sua postura foi de encarar de frente o enorme desafio que havia recebido. “Não tinha experiência, mas não recuei e falei ‘se é para ir, então vamos’. Essa é a nossa função como enfermeiro”, diz, lembrando que também foi a postura de muitos colegas de trabalho:
Leia mais:“Muitos pediram afastamento por conta de comorbidades, outros procuraram outras funções no hospital, mas eu percebi muita gente engajada, pronta para dar o seu melhor”.
Longe de familiares, Dayanny vive em casa compartilhada com outras profissionais de saúde. Por estarem na linha de frente, como ela, permaneceram morando juntas, mas praticando todas as medidas sanitárias necessárias para evitar a contaminação pelo vírus. A enfermeira diz que teve a sorte de ter contraído o vírus e ficado assintomática, se curando sem prejuízos a sua saúde – mas o medo de levar a doença para casa era constante.
SENTENÇA DE MORTE
“Todo profissional da saúde tem medo. Vi alguns alugando flats, isolando quartos em casa, mandando a família para outro lugar. Fizeram inúmeras coisas para tentar blindar os familiares. A gente sai do plantão sem saber se está contaminado, e quando acordamos no outro dia e a respiração está OK, já é uma vitória. Todo dia a gente tem essa mesma preocupação” relata.
O dia a dia na linha de frente foi se tornando mais assustador ao ponto em que o esgotamento mental foi aumentando, atingindo diretamente o emocional e o psicológico de Dayanny. “Pessoas que conhecemos, profissionais da saúde ou não, faleceram e isso me deixou mal demais. Já saí do hospital esgotada fisicamente, chorando, triste e preocupada”, revela, contando que teve sintomas psicológicos diversas vezes; “a gente sabia que poderia estar assinando uma sentença de morte”.
A força para enfrentar a pesada situação veio pelo companheirismo na linha de frente, como soldados que travam uma guerra juntos nas trincheiras. “Os profissionais de saúde deram um show de engajamento – era a vontade de ver bem um ao outro. Eu me emocionei muito com minha equipe, com as coisas que vimos no país inteiro. É um vírus letal, gravíssimo, mas mesmo assim as pessoas enfrentam isso de peito aberto” destaca Dayanny, grata pelos colegas de trabalho, uma vez que também teve a sorte de não ver nenhum outro enfermeiro dos locais em que trabalhava falecer.
A enfermeira compara os dois picos que a doença teve, entre maio e julho de 2020 e fevereiro e abril de 2021, quando o sistema de saúde no Brasil inteiro foi sobrecarregado, acarretando lotação máxima nos leitos de UTI. “No primeiro pico tivemos colapso em alguns locais, mas ainda havia outros que não lotaram, então poderíamos transferir pacientes. Agora, todos os hospitais estão cheios: se não tem leito, não terá leito. Não tem válvula de escape”, ela reflete.
Mesmo com a incerteza de quanto tempo permanecerá na linha de frente, Dayanny deposita muita fé na vacinação: “A esperança é que a vacina possa fazer com que o vírus não nos adoeça, que tenha os efeitos minimizados, e assim possamos tratar a doença como uma gripe comum. Nosso sistema de saúde já era colapsado e a pandemia piorou isso, mas não só aqui no Brasil, no mundo todo”, pontua, ao pensar no desinchaço dos leitos de UTI caso a vacinação aconteça em larga escala, e afirma: “a vacina é nossa única esperança”.
ENFERMEIRO: MULTIPROFISSIONAL
Em meio ao Dia Internacional da Enfermagem, celebrado neste 12 de Maio, Dayanny chama a atenção sobre como é crucial o papel do enfermeiro no ambiente hospitalar. “A gente acaba tendo que ser um pouco enfermeiro, um pouco psicólogo, um pouco farmacêutico, um pouco fisioterapeuta, um pouco de todas as outras profissões. Passamos a maior parte do tempo em contato com o paciente, nos tornamos multiprofissionais pela demanda que recebemos”, conta, avaliando as dificuldades de sua profissão.
“Nós cuidamos do outro, mas quem vai cuidar de nós? Como profissionais da saúde, não devemos ser apenas aplaudidos, mas também respeitados, cuidados e remunerados. As instituições devem ter esse cuidado; já melhorou demais o olhar sobre nós, mas isso deve ser para todos os casos. O enfermeiro está desde a hora em que você nem nasceu, no pré-natal, até a hora do óbito. A enfermagem é muito importante em todas as fases da nossa vida”, completa Dayanny, dizendo que “felizmente e infelizmente” estão sendo mais lembrados agora.
Mais uma vez, Dayanny exalta os enfermeiros que estiveram e estão com ela dentro dos hospitais, ajudando a salvar vidas: “O profissional enfermeiro sabe bem se comportar emocionalmente sobre tudo isso. É difícil ver um enfermeiro largar tudo, surtar, diante dessa situação. O medo aumenta, mas a gente coloca o risco de lado e vai trabalhar, até porque é nosso sustento também. Se você desiste de cuidar, desiste da profissão”.
Dayanny decidiu finalizar a entrevista olhando para mais áreas da saúde: “Enfermagem é 80% do processo, mas sem esses outros profissionais nada seria possível. Temos o pessoal da nutrição, da limpeza, da radiologia, da farmácia. Uma equipe muito grande de pessoas prontas para lutar na linha de frente, firmes e fortes. É um trabalho muito difícil e devemos lembrar de todos esses profissionais”. (Juliano Corrêa)