Para um cultuador das liberdades, como se autointitula o contrarregra J Maia, de 79 anos, tomar a segunda dose da vacina contra a Covid-19 nutre a expectativa de que o mundo deixe para trás os aprisionamentos da pandemia. Residente do Retiro dos Artistas, ele reconhece na imunização uma saída, mas sabe que ainda não são tempos de “sair cantando glórias e aleluias”. É hora, diz ele, de cautela com uma dose de esperança. Mistura que também se reflete em números, como a projeção de que, só até o fim de março, 16 mil vidas possam ter sido salvas no país devido à vacina, possivelmente combinada com outros fatores, segundo análises do Impulso Gov — organização que reúne especialistas na coleta e na análise de dados de saúde.
No país com mais de 400 mil mortos pela Covid-19, o detalhamento do que ocorre em municípios como Rio e São Paulo também revela outros indícios de que uma virada é possível. Em dados atualizados até a manhã de ontem, em ambas as cidades a proporção de idosos com mais de 70 anos sobre o total de óbitos caiu mais de 10 pontos percentuais em março e abril em relação à média do restante da pandemia.
— Já superamos a varíola, hoje há remédios para controlar a Aids. Tenho absoluta certeza de que este momento vai passar. Sou um humilde romântico, que a vida inteira sonhou que tudo seria maravilhoso, e que agora espera que todas as gerações, não só a minha, voltem a ser felizes. É um problema da ciência e das pessoas, que devem continuar se cuidando, como eu tenho feito aqui — diz J Maia, que tem como uma das companhias uma calopsita criada solta.
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No caso do alento captado pelo Impulso Gov, os dados vieram a partir dos óbitos por Covid-19 contabilizados pelo Registro Civil. Ao longo da pandemia, afirma a análise, a parcela dessas mortes correspondente às pessoas com mais de 80 anos permaneceu praticamente constante de abril de 2020 até o final de janeiro passado: em média, 28,3% no país. À medida que a vacinação desse grupo prioritário avançou, houve uma redução nesse percentual. Entre fevereiro e 31 de março deste ano, a queda foi para 15,1%, ou 13,2 pontos percentuais a menos. Supondo que a proporção de idosos maiores de 80 anos vítimas da Covid permanecesse a mesma de antes, os especialistas calculam as quase 16 mil vidas que teriam sido poupadas.
Repetindo uma ponderação que também é ressaltada por pesquisadores de outras instituições, o Impulso Gov diz que não é possível afirmar que o impacto seja integralmente devido à vacinação. Maior isolamento social dos idosos, melhor manejo da doença em pacientes dessa faixa etária e a possibilidade de que os senhores e senhoras que não adoeceram anteriormente sejam mais saudáveis são algumas das outras hipóteses levantadas para explicar a mudança.
Por outro lado, afirma Marco Brancher, coordenador de análise de dados do Impulso, existe uma preocupação crescente quanto a uma desaceleração da oferta de doses das vacinas contra o coronavírus. Ele destaca que, inicialmente, previa-se que em abril já tivesse sido vacinada toda a população acima de 60 anos, o que acabou se frustrando. Outro estudo do Impulso, sobre o andamento da vacinação, aponta que esse cenário agora se dê em maio. Já no que se refere ao distanciamento social, mais um pilar para conter a pandemia, ele lembra que o panorama tampouco é o adequado, com medidas descoordenadas e pulverizadas pelo país.
— A população acaba ficando com a impressão de que ela só paga a conta, perde o emprego e não tem os auxílios do governo federal, seja auxílio emergencial para a população ou para as empresas. E não vê resultado. Se olha sem atenção os dados, a impressão que dá é que o lockdown não funciona — diz Brancher.
No Retiro dos Artistas, mesmo com todos os residentes e funcionários vacinados com as duas doses, a direção optou por apertar as regras de distanciamento social nas últimas semanas. Administradora do local, Cida Cabral acredita que essas medidas garantiram que a instituição centenária atravessasse 2020 sem um único caso de Covid. Após a vacinação, houve um afrouxamento, como a permissão de que os residentes pudessem sair à rua e a reabertura do refeitório. Mas a confirmação de três casos recentes acendeu o alerta, fazendo com que se voltasse atrás.
A sensação de um certo alívio e a melhora das perspectivas para o futuro, isso sim, já retornou à rotina. O goleiro Manga, que brilhou no glorioso Botafogo dos anos 1960, por exemplo, tem saído para caminhadas com a esposa Cecília, dentro do próprio Retiro, com muita confiança de que ficará tudo bem. Já o iluminador e cromoterapeuta Kari Lage, de 65 anos, segue firme em seu projeto de transformar a biblioteca que ele cuida numa referência no Rio, e com planos renovados de que um dia a comunidade fora do Retiro também possa visitá-la. Enquanto o ator e coreógrafo André Luiz, de 70 anos, cuida dos jardins do espaço, à espera de logo matar algumas saudades:
— Não me acostumo nunca de não ver minha família. E quero tomar um banho de mar! Emocionalmente, eu me sinto mais protegido agora, com a vacina. Mas, na prática, mantenho todos os cuidados. Só saio de casa com álcool em gel e usando duas máscaras.
A volta das caminhadas
Fora do Retiro, em Barra do Piraí, a vontade de reunir os filhos é o que aperta para João Getúlio Amâncio, de 70 anos. Ele e a mulher Vera Lúcia, com quem está casado há 47 anos, tomaram a segunda dose da vacina no mesmo dia, juntos, em 23 de abril. Getúlio não vê a hora, agora, de o período para a imunização se cumprir para animar a companheira de uma vida a sair de uma reclusão que já dura mais de ano:
— Quero incentivá-la a fazer caminhadas comigo. Na primeira dose, o semblante dela já tinha mudado. Só não vamos arredar pé dos cuidados.
No estado do Rio, essa esperança também começa a aparecer nos números. Em março e abril deste ano, segundo dados da Secretaria estadual de Saúde até ontem, a proporção de idosos com mais de 70 anos entre os óbitos por Covid-19 caiu a 45,55% do total, contra os 53,35% em média que se registrava anteriormente na pandemia. As internações por síndrome respiratória aguda grave (SRAG) seguem um padrão parecido. Nos dois últimos meses, essa faixa etária respondeu por 27,3% das hospitalizações, abaixo dos 34,65% que se registravam antes na pandemia, segundo números até 27 de abril.
Com relação aos óbitos, na cidade do Rio, a parcela dos maiores de 70 anos entre as vítimas caiu de 56,43% em média até fevereiro para 44,86% em março e abril. No município de São Paulo, a variação foi um pouco maior: queda de 56,44% para 41,98%. Matemático da Unicamp, o professor Paulo José da Silva e Silva, ao analisar esses dados contidos no sistema de informação da prefeitura paulistana sobre saúde, calculou a média móvel de mortes, por data de óbito, para as diferentes faixas etárias, onde a queda, segundo ele, foi ainda mais clara.
— Em meados de março, quando o número de casos explodia, houve um crescimento forte nas mortes. Quem sofreu mais foram os mais velhos. Depois, a mortalidade deles cai rapidamente, e somente os mais velhos têm números que mostram a queda, indicando que a mortalidade deles está reduzindo de forma mais consistente do que outras faixas etárias — afirma ele, apontando as maiores quedas entre os que têm mais de 75 anos. (Fonte:Extra)