“E como eu precisei correr para desemborcar a havaianas. Era uma alegoria do bestiário da existência e passada de infância em infância. Ainda vejo alguns adultos correndo com a criança deles para desvirar o chinelo emborcado no caminho”.
A infância da gente é irrigada por crendices populares que nos assustavam e nos fazem sorrir hoje. Certamente em algum momento da sua vida você já foi impedido de comer manga e tomar leite em seguida, senão você morreria.
Mas havia um temor grande entre meninos de todas as idades, que era infundido pelos adultos. Deixar o chinelo virado de cabeça pra baixo era um pecado capital, pois nos fizeram crer que “chinelo virado de cabeça pra baixo a mãe morre”.
Leia mais:E como eu precisei correr para desemborcar a havaianas. Era uma alegoria do bestiário da existência e passada de infância em infância. Ainda vejo alguns adultos correndo com a criança deles para desvirar o chinelo emborcado no caminho. Eu, ainda hoje, desviro os meus. Pura herança mágica.
Seria do tempo medievo, da moral e da tônica punitiva perpetuada por monges antibruxas de lá para cá? E ainda hoje disseminada por um punhado nocivo de pessoas de várias acreditações diferentes nas tvs, lives e zaps?
Também podem ser permanências ainda da Era da Peste, por exemplo, e da matança de gatos (principalmente os negros), que teria dado mais ainda no desequilíbrio de um cotidiano insustentável e a multiplicação exponencial de ratos e pulgas para a finalização antecipada da vida de milhares.
São as narrativas simbólicas, tão contemporâneas e maldosas, urdidas para se acreditar que a morte é isso mesmo, “todos vamos morrer” e não é uma gripezinha que nos fará perder dinheiro e empregos. É assim ou a morte é posta no campo do bestial e só os apavorados trombam nela.
Assistir próspero bispo brasileiro se vacinando com o melhor dos imunizantes em Miami é a confirmação de que Jesus, para ele, é apenas uma artimanha para encher as burras.
Foi esse mesmo cidadão quem disse que a covid-19 é uma tática de Satanás e da mídia para gerar dúvida e medo. Pelo visto, Deus não deu imunidade para Macedo. E ainda mais no cemitério em que o Brasil se transformou.
Numa outra ponta ionesca da covid, muitos médicos fiadores das políticas negacionistas de Bolsonaro têm pensamento lesivo semelhante ao de Macedo. Em meio à pandemia que desnaturaliza o ato perfeito da morte, eles creem na invenção de uma persona que “derramou o próprio sangue pelo Brasil”.
É tão manicurta a crendice no mito do Messias esfaqueado quanto foi a creditação na última propaganda da campanha de 2002 para presidente da República. Na narrativa cafona-marqueteira, várias mulheres vestidas de branco e grávidas da “esperança” vendiam o nascimento de um Salvador – no caso Lula.
Entre um e outro, menos medonho, sou obrigado a me iludir com o enredo imperfeito da ciência, porque é esta quem pesquisa, quem analisa a situação dos entubados e não classifica o choro, pela morte alheia, como “frescura”.
Dá vergonha alguns médicos prescreverem um tratamento precoce da covid-19. Será que a OMS é tão sacana assim com mais de dois milhões de mortes?
Receitar cibalena como medicação (isso aqui é uma alegoria), e a pessoa ter a sorte ou o organismo mais resistente ao novo coronavírus, pode criar a ilusão de que o comprimido é um escudo eficiente contra a covid. Será que centenas de pesquisas científicas do mundo são tão desonestas com a vida dos outros?
Quando vi o governo local instalar uma tenda para colocar na frente do Hospital Municipal de Marabá para entregar “kit covid”, tive a impressão que a próxima crise da pandemia no município será um colapso funerário. E não haverá chinela desemborcada que dê jeito. (Ulisses Pompeu)
* O autor é jornalista há 24 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira