Na série The Good Place, um professor de filosofia chamado Chidi tenta ajudar seus colegas de vida após a morte a se tornarem pessoas melhores, apresentando a eles algumas questões morais e éticas com as quais os filósofos se preocupam. Entre elas, o clássico “dilema do bonde”:
“Imagine que você está dirigindo um bonde desgovernado e no trilho à sua frente estão cinco operários que você vai atropelar. Você tem a opção de mudar a direção do trem, o que resultaria na morte de uma única pessoa que está no outro trilho, em vez dos cinco operários. O que você faz?”
Para o azar de Chidi, ele é imediatamente colocado na situação de estar efetivamente dirigindo um bonde sem freio e precisa decidir o que vai fazer – a verdade é que ele não consegue.
Leia mais:Como a série mostra, pessoas que estudam ética, como eu e Chidi, adoram pensar em situações hipotéticas, mas podem estar totalmente despreparadas para tomar decisões éticas na prática.
Como Michael, outro personagem da série, observa: “É por isso que todo mundo odeia professores de filosofia moral… é tudo tão teórico”.
Então, por que as pessoas continuam estudando ética? Uma resposta gratificante para mim e meus colegas seria: porque querem se tornar pessoas melhores. Mas não é por aí.
Se você precisa fazer um curso de ética para se tornar uma pessoa melhor, provavelmente há algo errado com você, para começar. No entanto, acredito que vale a pena tentar descobrir princípios éticos que poderiam, em teoria, ser adotados por todos.
Não porque vai deixar sempre claro como devemos agir, mas porque nos ajuda a entender melhor a nós mesmos e nossas sociedades – e pode até nos preparar para enfrentar os grandes desafios do século 21, desde as mudanças climáticas até o avanço da inteligência artificial.
A busca por princípios éticos universais é algo que atormenta os filósofos há séculos. Para entender a razão, precisamos olhar através de toda a história da humanidade – desde o surgimento das leis nas sociedades nos últimos 10 mil anos – e analisar as maneiras pelas quais a ética pode moldar nosso futuro distante.
Nossa noção de certo e errado vem de longe, por isso pode ser útil distinguir entre moral e ética.
A moral é uma noção individual, em grande parte intuitiva e emocional, de como devemos tratar os outros. Provavelmente, existe há centenas de milhares de anos, e talvez até em outras espécies.
A ética, por outro lado, é um conjunto de princípios formalizados que se propõe a representar a verdade sobre como as pessoas devem se comportar.
Por exemplo, enquanto quase todo mundo tem um forte senso moral de que matar é errado e que simplesmente “não se pode fazer isso”, os especialistas em ética há muito tempo tentam entender por que matar é errado e sob que circunstâncias (guerra, pena de morte, eutanásia) ainda pode ser permitido.
Se você colocar um pequeno grupo de pessoas em relativo isolamento, esse senso moral natural normalmente será suficiente para permitir que elas se entendam. No entanto, em algum momento da nossa história, as sociedades humanas se tornaram tão grandes e complexas que foi necessário criar novos princípios de organização.
Originalmente, serviam provavelmente como meros suportes para nossas emoções e intuições pré-existentes: invocar um pai sobrenatural poderia aproximar vários grupos por afinidade ou identificar um inimigo comum poderia impedir os jovens de lutar entre si.
No entanto, tais suportes são inerentemente instáveis, e as tentativas de codificar princípios mais duradouros tiveram início logo depois que nossos ancestrais começaram a formar Estados sólidos.
Desde os primeiros registros escritos, encontramos citações ao que são reconhecidamente valores e princípios éticos. Por exemplo, o Código de Hamurabi, conjunto de leis redigidas na Babilônia no século 18 a.C., revela a intenção do autor:
“Implantar a justiça na terra, destruir os ímpios e malfeitores; para que os fortes não oprimam os fracos; por isso, eu devo… iluminar a terra para promover o bem-estar da humanidade.”
Embora essas intenções sejam admiráveis, e dialoguem com nosso senso inato de justiça, o principal desenvolvimento ético de códigos de leis como esse é que objetivam julgamentos de certo e errado, fazendo com que não sejam mais apenas uma questão de opinião.
Este estado de direito não apenas obrigava os cidadãos a obedecer ao rei, mas também obrigava os reis a manter sua palavra e fazer cumprir as leis de maneira consistente e transparente.
O Código de Hamurabi também apresenta um dos primeiros registros do princípio ético da proporcionalidade, impondo que:
“Se um homem arrancar o olho de outro homem, seu olho deverá ser arrancado. Se quebrar o osso de alguém, seu osso deverá ser quebrado.”
No entanto, de um modo geral, é apenas uma lista de leis, e não uma teoria ética – e incorpora um senso de desigualdade e subjetividade de julgamentos que contradiz suas intenções universais.
Por exemplo, a declaração acima valia apenas para os homens donos de propriedades, e o código tinha outras leis que descartavam completamente os direitos humanos das mulheres, como no caso de um homem matar a esposa de outro, “sua filha será condenada à morte”.
A Regra de Ouro
Levaria mais de mil anos até as primeiras teorias da ética surgirem entre 600 a 0 a.C. Esse período, conhecido como “Era Axial”, presenciou o advento de movimentos filosóficos e religiosos na Grécia, Israel, Índia e China que viriam a dominar o mundo.
Embora esses movimentos tivessem muitas diferenças, também apresentavam semelhanças importantes – o que não é nenhuma surpresa, dado que essas comunidades já eram parceiras comerciais. Mas mostra que elas estavam tentando resolver os mesmos problemas – por exemplo, como uma sociedade formula princípios éticos e de organização que tenham apelo genuinamente universal.
Um elemento comum a todos esses movimentos é a “Regra de Ouro”, também conhecida como princípio da reciprocidade.
“Evite fazer o que você pode culpar os outros por fazer” – Tales de Miletus.
“O que for odioso para ti, não faça a teu próximo: esta é toda a Torá; o resto é mero comentário” – Talmude Babilônico.
“Se o Dharma todo pode ser traduzido em poucas palavras, então seria: aquilo que é desfavorável para nós, não faça com os outros” – Padma Purana.
“Zi gong perguntou: ‘Existe alguma palavra que possa guiar uma pessoa ao longo da vida?’ O mestre respondeu: ‘Que tal reciprocidade: nunca imponha aos outros o que você não escolheria para si mesmo?” – Os Analectos.
O fato de tantos movimentos distintos mostrarem um grande apreço por esse princípio reflete não só sua simplicidade, mas também sua veracidade e valor. Diz claramente algo importante sobre como devemos viver.
Mas, infelizmente, há muita coisa que a Regra de Ouro não diz – e é extremamente difícil de ser aplicada objetivamente, uma vez que define como devemos tratar as pessoas em relação aos nossos próprios sentimentos sobre como devemos ser tratados.
Por exemplo, suponha que estamos considerando como tratar um criminoso. Muitos de nós provavelmente nunca cometemos um crime e, portanto, poderíamos não ter uma expectativa de como seríamos tratado se tivéssemos cometido.
Isso significa que somos livres para acreditar em coisas como “se eu fosse um criminoso, esperaria ser punido severamente” – e, assim, negaríamos um tratamento humano aos criminosos.
Por esse raciocínio, os ricos podem achar que a Regra de Ouro justifica a forma como tratam os pobres; os militares vitoriosos, o tratamento que dão aos derrotados; os misóginos, a maneira como tratam as mulheres – e assim por diante.
Por causa disso, as filosofias da Era Axial invariavelmente complementavam a Regra de Ouro com um código de ética mais abrangente – e faziam isso de maneiras distintas.
Algumas vertentes, especialmente na Europa, evocavam a autoridade de um juiz moral (como um deus, governante ou homem sábio). Outros sistemas, como o confucionismo, apelavam à estabilidade da ordem social e às relações harmoniosas entre pessoas diferentes.
Outros recorriam à concepção da natureza humana, argumentando que os seres humanos desempenham um papel específico no Universo e, portanto, deviam trabalhar para cumprir essa função.
Esses recursos são usados para justificar regras de conduta que determinam como devemos agir no dia a dia. E esses princípios costumavam divergir surpreendentemente pouco dos que vieram antes, continuando a respaldar hierarquias sociais desiguais, escravidão, misoginia e violência.
Além disso, todos enfrentam o mesmo tipo de problema, que a filosofia ocidental identifica em Eutífron, um dos diálogos de Platão. A dificuldade é que, se alguém apela a uma autoridade, ordem ou ideal superior como fundamento dos princípios éticos, então enfrenta um dilema.
Por um lado, podemos querer dizer que essa autoridade, ordem ou ideal é inerentemente justa, de modo que quaisquer princípios que derivem dela devem estar corretos.
No entanto, se acreditarmos nisso, os princípios que ela produz são essencialmente arbitrários, uma vez que seríamos obrigados a segui-los seja lá quais forem, mesmo que, ao invés de “não matarás”, fosse “matarás o tempo todo”.
Em resposta, é tentador argumentar que apelar a uma autoridade, ordem ou ideal se justifica por outras razões, como sua benevolência em relação à humanidade. No entanto, se for assim, não pode ser a fonte absoluta da ética.
Este é um verdadeiro desafio para a ética. Será que há princípios éticos com o mesmo valor da Regra de Ouro, mas que podem produzir uma teoria abrangente de como alguém deve viver sem precisar apelar para uma autoridade ou ideal superior?
É aí que entra a ética moderna e suas peculiaridades.
Leis universais e utilitarismo
Nos últimos 250 anos, surgiram novas correntes da ética. Uma delas é o argumento de que os princípios éticos precisam ser deveres que todos devem obedecer como leis universais, sem exceção ou contradição.
O filósofo Immanuel Kant propôs identificar tais princípios imaginando o oposto: princípios que iriam se contradizer se aplicados universalmente.
Para simplificar uma de suas conclusões, ele sugeriu que não é ético mentir sob nenhuma circunstância, porque se houvesse uma lei universal dizendo que mentir era aceitável, ninguém acreditaria em ninguém.
Outra corrente, chamada utilitarismo, argumenta que existem certos valores universais, como “bem-estar”, que todos nós compartilhamos e, portanto, devem ser adotados como um bem universal.
Devemos conceber princípios éticos que promovam esses valores – princípios que todos nós teremos motivos para endossar.
Ambas as correntes oferecem uma combinação de orientação moral coerente e apelo evidente que vai além do pensamento ético anterior.
Além disso, ao se basearem diretamente em considerações do que é “certo” ou “bom”, evitam problemas como a necessidade de apelar para uma autoridade superior.
No entanto, há apenas um pequeno problema.
Na verdade, talvez mais de um, e talvez não tão pequeno…
O primeiro é que essas duas correntes discordam não apenas sobre os fundamentos da teoria ética, mas também sobre o que as pessoas devem fazer. Podemos ver isso analisando o exemplo que citei no início deste artigo – o “dilema do bonde”, criado por Phillipa Foot em 1967.
Com o objetivo de maximizar o bem-estar, o utilitarismo argumenta que devemos mudar a direção do bonde, matando uma pessoa, em vez de cinco. Embora tanto matar uma pessoa, quanto cinco pessoas seja algo terrível, eles defendem que matar cinco é cinco vezes pior.
A tradição kantiana, por outro lado, avalia essas escolhas com base em quão bem elas se traduziriam em leis universais. Considere a opção recomendada acima pelo utilitarismo: tirar o bonde da rota de colisão com cinco pessoas, para matar apenas uma. Como lei, poderia ser algo como: “Eu sacrificarei uma pessoa se isso me permitir salvar a vida de mais pessoas”.
No entanto, esse princípio é contraditório porque implica que as vidas humanas têm tanto um valor intrínseco (e, portanto, devem ser salvas), como podem ser tratadas como um meio de obter algum outro fim (e, portanto, podem ser sacrificadas).
Kant acreditava, assim, que qualquer lei universal para seres racionais teria de concluir que matar, assim como mentir, nunca era justificado, mesmo para impedir a morte de um número maior de pessoas.
Existe uma corrente de filósofos tentando superar essas diferenças para criar uma teoria ética unificada. No entanto, a maioria dos filósofos afirma que essa unificação está, na melhor das hipóteses, muito distante – e que o intenso debate em torno de casos como o “dilema do bonde” indica que ela pode não estar se aproximando.
Outro problema é que tanto o utilitarismo quanto o kantianismo estão profundamente enraizados em um conjunto de normas culturais que são reducionistas, dualistas e individualistas.
Isso costuma ser visto como problemático, uma vez que essas normas são restritas a um pequeno grupo de sociedades ocidentais, educadas, industrializadas, ricas e democráticas – e não refletem a grande maioria da humanidade. Então, não devem ser impostas a todos.
No entanto, há uma objeção mais profunda a essa concepção: é simplesmente inadequado orientar a tomada de decisão ética no mundo real. Pense no “dilema do bonde” novamente.
O cenário envolve um indivíduo (o motorista) fazendo uma escolha simples (mudar de trilho ou não), cujo resultado se sabe de antemão (uma ou cinco pessoas vão morrer). Este exemplo foi criado para fornecer o cenário perfeito para avaliar essas teorias.
Infelizmente, os problemas éticos do mundo real não são tão claros. Invariavelmente, envolvem escolhas complexas com resultados incertos e são enfrentados por grupos ou sistemas, que nem sempre são grandes tomadores de decisão.
Embora um pequeno número de pesquisadores tenha se dedicado a estudar a ética da complexidade ou as realidades da incerteza, o trabalho deles é uma exceção.
Esse problema se torna especialmente grave quando deixamos de considerar os princípios éticos para pessoas com inclinação moral e passamos a usar esses princípios para desenvolver algoritmos éticos.
No momento, os desenvolvedores de inteligência artificial estão usando casos baseados no “dilema do bonde” para tentar orientar as decisões de carros autônomos (que não precisam de motorista).
No entanto, esses veículos devem, como todos os motoristas, tomar decisões em ambientes complexos e incertos, diferentemente do “dilema do bonde”. Além disso, eles devem representar todos – e não refletir apenas os valores e crenças de seus desenvolvedores de países ocidentais, educados, industrializados, ricos e democráticos.
O futuro da ética
Diante de tudo isso, o que o futuro da ética nos reserva? Primeiro, vamos considerar dois possíveis cenários que, como filósofo de ética, prefiro evitar.
Um deles pode ser resumido como “mais do mesmo”.
As pessoas tentam produzir sistemas coerentes de princípios éticos há milhares de anos e, embora eu pessoalmente acredite que hoje estamos fazendo muito mais progresso nesse sentido do que em qualquer outro momento da história da humanidade, seria arrogante dizer com segurança que somos incapaz de cometer os erros do passado.
Pessoalmente, não tenho dificuldade em analisar os períodos em que a ética foi usada para respaldar a violência e a escravidão e dizer “isso foi um erro, aquelas pessoas estavam equivocadas”.
No entanto, as mesmas tensões que podemos observar nos primeiros códigos de leis parecem perseguir a ética até hoje.
Por um lado, os filósofos estão buscando princípios de justiça que atendam aos interesses da humanidade. Por outro lado, eles parecem, na melhor das hipóteses, sustentar a perspectiva de progresso moral limitado, continuando a promover, ou pelo menos obscurecer, os interesses dos privilegiados e dos poderosos.
Um segundo futuro possível é, em muitos aspectos, mais sombrio, embora eu não tenha certeza de que não seja preferível. Nesse cenário, não apenas o projeto de criação de uma teoria ética coerente fracassa, como também todo o campo da ética filosófica entra em colapso.
Talvez as pessoas se cansem das nossas reflexões teóricas, ou talvez a gente migre para uma sociedade mais orientada por dados, que prejudiquem nossa fé na existência de valores humanistas independentes aos quais especialistas em ética evocam em suas teorias.
Talvez todo mundo volte a apelar ao senso comum da moralidade e à intuição ética, ou talvez simplesmente encontremos uma maneira de evitar interações que exijam ser regidas por princípios éticos, e passemos a viver isolados em bolhas, onde o conflito direto se torna simplesmente impossível.
Não sei como avaliar a probabilidade de nenhum desses futuros, mas acredito que ambos seriam indesejáveis.
As habilidades inerentes ao homem de cooperar e construir instituições econômicas e políticas que facilitam o comércio, transferem conhecimento e gerenciam nossos instintos violentos estão longe de serem perfeitas. Mas foram essenciais para começar a enfrentar questões globais, como a proliferação de armas nucleares ou as mudanças climáticas.
No entanto, esse é um desafio que está ficando cada vez mais complexo à medida que as sociedades globais se integram; as comunidades locais se fragmentam e estratificam; as mudanças tecnológicas e ambientais aceleram; e os desafios internacionais que enfrentamos se tornam cada vez mais difíceis de serem resolvidos.
A ética pode ter surgido em parte como uma resposta ao colapso social recorrente, mas esse é um problema que nos acompanha até hoje – e suas consequências são, sem dúvida, maiores do que nunca.
Tampouco é provável que se torne mais fácil. Várias trajetórias possíveis de a humanidade seguir sugerem um futuro em que os processos intuitivos e emocionais pelos quais procuramos dissipar a violência e nos relacionar se tornam mais ou menos redundantes.
Isso inclui futuros “pós-humanos”, em que abandonamos voluntariamente essas habilidades como reflexo do viés e das fraquezas humanas; e futuros em que colonizamos o espaço, tornando a comunicação quase impossível devido às vastas distâncias envolvidas.
Assim, continuo esperançoso de que possamos criar um terceiro futuro, com base nas correntes éticas que herdamos para conceber princípios universais que podem tanto orientar o comportamento humano, quanto fazer face aos desafios urgentes que temos pela frente.
Tal teoria teria a capacidade de atração da sabedoria antiga, o rigor da filosofia contemporânea e a habilidade de dialogar com a complexidade e a incerteza em que vivemos.
Pode soar utópico, mas gostaria de lembrar que, embora os desafios enfrentados pela ética estejam, de certa forma, ficando mais complexos, também há mais ferramentas para resolvê-los – como, por exemplo, capacidade computacional para entender como os homens interagem com o mundo.
Vários filósofos sugerem que, para conseguir navegar pelo atual período de incerteza e risco global, a humanidade deve reservar um tempo para uma “longa reflexão”, em que deliberadamente desaceleramos o progresso tecnológico para ter tempo de entender melhor nossos valores e a nós mesmos, antes de decidir o que queremos fazer a seguir.
Isso, sem dúvida, viraria o jogo a nosso favor.
(Fonte: BBC /Simon Beard*)
*Simon Beard é pesquisador do Centro de Estudos de Riscos Existenciais da Universidade de Cambridge, no Reino Unido.