Nunca tive vontade de largar Marabá. Saí algumas vezes e voltei logo. Amorosamente, me apetece mais regressar do que partir. Mesmo que o atormentador complexo de mediocridade, às vezes, atrapalhe os afetos entre nós. Vi mais beleza e poesia nos agrados daqui do que alhures. Nada de bairrismo. É um gostar que a gente entende como valorização do que é nosso.
E cresci ouvindo em casa e na rua que éramos provincianos, um bando de índios. Um pau-de-arara entupido de atrasados e mortos de fome. Um magote de abestados quarados do sol e eternamente carentes de evolução.
Pouco ouvi falar que éramos melhores ou pelo menos iguais a Imperatriz-MA. A cultura de lá, sim, essa dava de lavada nos pebas daqui. Cansei de ouvir na escola, universidade, igreja, praça, campos de futebol, quadras de vôlei, bodega e esquinas que não tínhamos sustância intelectual. Nenhuma. Nem a dos matos.
Leia mais:Encasquetava: somos ocos. Uns doidins. Judeus desterrados e clandestinos. Uns c# de bebo! Nêgos fedorentos! Fis de uma égua! Galinha de granja do fundo sujo! Quengas de soldado! Dona Maria e seu Zé! Mula sem cabeça… Uns sem futuro! Faça ideia, meu amigo, de tanta coisa que já fomos chamados ao longo da história.
Isso, apenas, a comparação com os maranhenses. Antigos donatários que nos possuíram uns anos e nos abandonaram. Quando Belém e Goiânia entravam na roda, aí o destroço do ranço era ainda muito mais.
Mais machistas. Nenhum homem daqui era romântico e desconhecia oferecer flores. Brutos, feios, fala cantada e fanhosa. Português inferior, ignorantes, analfabetos. Belém era o Belém! Maravilhoso. E Goiânia, meu Deus, sem defeito algum. Cultura como pólen, a cada espirro.
Sim, as mais gostosas estavam lá. Aqui? Umas muquiranas, neguinhas do Codó, quando caga dá um nó”. “Ô povo fei!”. Povinho batoré, da canela fina, beiço de gamela, cara de caboclo, nariz de taboca. Que cospe dentro de casa, se acocora na cozinha para tomar café, jogar conversa fora e depois… rede.
Dos costumes de beber água puxada pelo Zé Carregador, coada no pote ou aparada das goteiras das telhas. Comedores de feijão com farinha, amassados entre os dedos, feito capitão.
Coitada de Marabá, tanto complexo para tratar! Tanto trauma pra vomitar. Tanta dor para deixar de sentir e choramingar. Vai ver, como diziam (ainda repetem), nossos colonizadores poderiam ter tido sangue mais puro, gente mais educada. Menos Zé Ruela, Zé Goiaba, Zé Mané da Padaria.
Os goianos ou mineiros, talvez. No Rio, requintes e frescuras. E se fossem paulistas, gaúchos… Ou italianos, franceses, que fizeram de São Paulo um lugar de tudo e nada. Os alemães que esfriaram os abraços farrapos… Aqui, talvez, os holandeses. Os protestantes, azuis olhos e loiros. Que os índios e os portugas “burros” botaram pra correr. Ô o mei, pega o beco, cisca diabo. Xô!
É… Todo gestor público deveria ter um psicólogo ou terapeuta enquanto durasse o tempo do poder de araque. Quatro, oito, doze anos… São tantos séculos de traumas e chibatadas nos couros da negada. Ah, Marabá, é preciso investigar tuas dores e gozar com tuas delícias. Reaprender a ser tribo. A ser Xicrin, Gavião, Suruí…
Os índios voltaram. Reencarnados, é verdade. Acampados nos sinais de trânsito (pedindo esmolas porque foram enxotados da Venezuela). Um bando de cachaceiros, famintos, mulheres, sem rumo… Enraizados. Sim, e nós fazemos o mesmo com esses irmãos que sofrem um preconceito maior que o nosso.
Tão em guerra, não! São da paz. Num são é abestados. Querem também ser da nossa cidade, de Marabá. Dialogar…
(Ulisses Pompeu)
* O autor é repórter do CORREIO há 24 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira