A chuva do verão amazônico deu uma trégua, o aplicativo de celular marca a temperatura de 30° e, sob um sol escaldante, um garoto se refresca ao ar livre jogando um balde de água na cabeça. Perto dali, duas crianças brincam com um velho carrinho de bebê. O objeto cor de rosa contrasta com as nuances desgastadas dos barracos que fazem pano de fundo para a cena que começou a cinco meses.
E as cenas capturam recortes da realidade dos ocupantes da área batizada como “Bairro Ferrovia”, em Marabá. Imersos em uma batalha pessoal pelo direito de uma moradia digna, os moradores vivem sob um futuro incerto, engolindo o medo e a insegurança de serem, a qualquer momento, despejados.
A Constituição Federal estabelece que a propriedade deve atender sua função social (contribuir para o desenvolvimento sustentável, a justiça social e o interesse coletivo), o que não era o caso “Bairro Ferrovia”, que antes era um terreno baldio repleto de lixo. O espaço – localizado entre o bairro Nossa Senhora Aparecida (popular Coca-Cola) e a Estrada de Ferro Carajás -, foi ocupado em 25 de julho de 2024.
Leia mais:A ocupação é composta por três terrenos. O maior, localizado próximo ao viaduto que dá acesso ao bairro Nossa Senhora Aparecida; um de tamanho médio, mais acima e ainda próximo ao viaduto, apelidado de “25 de Julho”; e um terceiro, mais distante, chamado de “Morro Alto”. Ambos paralelos à ferrovia.
“Vamos lutar até o fim”
Sentado à sombra, em frente ao seu barraco de um cômodo, Luís Ricardo garante que os moradores da ocupação “Bairro Ferrovia” vão lutar até o fim. “Até que o juiz diga se é para a gente ficar ou não, estaremos aqui na nossa luta por moradia”.
Ele observa o mar de casebres à sua frente e reflete que as moradias não são melhores por questões financeiras. Luís cita o alto custo do aluguel e da alimentação ao detalhar a dificuldade em sobreviver com a parcela de R$ 600 do Programa Bolsa Família.
“Eu morava de favor, o valor do meu Bolsa Família não dá para pagar um aluguel. Eu faço tratamento psicológico pelo Caps e estou esperando meu benefício pelo BPC (Benefício de Prestação Continuada). Se eu recebesse já tinha construído uma casinha melhor”, calcula.
O chão de sua moradia é de terra batida e para lidar com a solidão, ele tem como companhia um pequeno cachorro. Ao lado de seu barraco, feito de madeira compensada e coberto com “telha Brasilit”, Luís está iniciando uma plantação de milho, que servirá de reforço para sua alimentação. “Às vezes, a gente se une, faz uma refeição por aqui mesmo. A gente vive desse jeito, em regime comunitário”, compartilha, em tom desolador.
Mas a insegurança alimentar não é a única de Luís. Existe o medo de dormir e não amanhecer. “Filmam a gente, passam drone por cima para dizer que não tem morador. Já foram parados muitos carros de frete aqui. A pessoa começa a levantar uma casa 4×4 de alvenaria e os seguranças vão lá e dizem para a pessoa não fazer”.
Ele é firme ao explicar que antes da ocupação era uma área abandonada: “Só servia de lixão, para desovar corpos”. O terreno agora serve de moradia para dezenas de famílias. A expectativa dos ocupantes é que a justiça regulamente o “Bairro Ferrovia” para que eles, enfim, possam chamar o lugar de lar.
“Nossa prioridade é garantir energia e água”
A busca por condições dignas de moradia é um desafio diário para os ocupantes do “Bairro Ferrovia”. É Jeneilson Martins Brito da Penha, presidente da Associação de Moradores do Bairro Ferrovia, quem compartilha os pormenores desta batalha.
“Estamos correndo atrás de parcerias, por exemplo com a concessionária de energia, para instalar postes e legalizar a eletricidade”, afirma. No entanto, até o momento, os pedidos foram negados sob a justificativa de o bairro não ser legalizado.
Jeneilson é desempregado e habita sozinho em um barraco construído ao fundo da associação. Antes de mudar para a ocupação, ele pagava aluguel para morar em um cantinho no Bairro Araguaia. Em sua dedicação integral às questões do “Bairro Ferrovia”, a falta de água encanada e tratada é um outro problema crítico.
A Prefeitura de Marabá chegou a designar um carro pipa para abastecer, uma vez por semana, uma caixa d’água de cinco mil litros, cedida pela Secretaria Municipal de Educação (Semed). Mas devido ao recesso administrativo das festas de fim de ano, nos últimos dias o depósito permanece vazio, sem perspectiva de reabastecimento.
“A situação dos moradores não é fácil. Muitos já saíram do aluguel e vieram para cá, estão aqui dentro com filhos, idosos também estão morando aqui. Então, a gente já passou por muita coisa, por muita luta. Essa é a nossa realidade”, exprime.
Assim como Luís Ricardo, Jeneilson teme a ação dos seguranças que permanecem na área, alocados em uma tenda que fica em uma das extremidades da ocupação. Apesar de uma trégua recente, a presença constante dos vigilantes gera constrangimento e sensação de monitoramento permanente. “Nos sentimos oprimidos, tiram fotos da gente diariamente, sentimos nossa privacidade violada”, desabafa.
Enquanto aguardam a resolução judicial para a questão fundiária, os moradores da ocupação padecem com a poeira (no verão) e a lama (no inverno), temem por sua segurança, habitam barracos mal-acabados e insalubres. Dificuldades sobrepostas pelo sonho da moradia própria, desejo que fortalece a decisão dos moradores de permanecerem no local, apesar dos imbróglios.
Jeneilson explica que representantes do Poder Judiciário realizaram visitas técnicas à ocupação recentemente e acionaram o município para buscar soluções que possam beneficiar as famílias. Enquanto aguardam uma decisão, os moradores mantêm o desejo de permanecer na área e conquistar seu lar definitivo.
“A nossa prioridade hoje é garantir energia e água. Estamos lutando por isso, porque viver aqui tem sido um desafio, mas também uma esperança de um futuro melhor para todos”, compartilha Jeneilson, esperançoso.
“Vim para cá na esperança de ter meu barraquinho”
Na área apelidada de “25 de Julho”, Laema Costa Martins construiu um barraco para morar com os quatro filhos. Mãe solteira e dona de casa, ela equilibra as despesas com o benefício recebido pelo Programa Bolsa Família.
Há seis meses ela viu no “Bairro Ferrovia” uma alternativa para escapar do alto custo do aluguel. “Vim para cá na expectativa de construir um barraquinho e ter um lugar para meus filhos”. Três dos pequenos estudam em escolas localizadas em bairros próximos, o mais velho no Bairro Araguaia e os dois do meio na Folha 10. O caçula ainda não estuda e passa seus dias dentro de casa, fazendo companhia para a mãe.
Assim como Laelma, cerca de 200 famílias fazem parte da comunidade que luta por melhores condições de vida. A falta de água e energia elétrica ainda são as maiores dificuldades. A ocupação, mesmo diante dos obstáculos, tornou-se símbolo de resistência e solidariedade em busca de um futuro mais digno.
Para além da barriga cheia, os moradores procuram maneiras de educar suas crianças. Uma escola comunitária foi erguida no local conhecido como “Morro Alto” e atende cerca de 50 pequenos. Neste início de ano, as atividades estão em recesso. A iniciativa, além de demonstrar a preocupação com a educação local, é também um símbolo de resistência e luta para as 200 famílias que moram na ocupação “Bairro Ferrovia”.
Pequenos negócios já presentes na “invasão”
Em meio à precariedade do “Bairro Ferrovia”, sinais de luta e resistência são vistos aqui e ali. O local, ocupado há cerca de seis meses, está repleto de barracos construídos em pequenos terrenos, que variam em suas medidas, alguns sendo de 8×10. Ruas estreitas foram desenhadas para delimitar as áreas, mas as pequenas casas se avolumam sem nenhum planejamento. É difícil entender onde começa um terreno e termina o outro.
Em meio ao caos dessa geografia intrincada, pequenos negócios começam a preencher o local. Em uma das entradas, lado a lado, estão uma borracharia e um salão de beleza.
O local clássico, onde ocorrem pequenos remendos em veículos, é identificado por suas placas de fundo amarelo e “decorado” com pneus em seu exterior, luzinhas de Natal podem ser vistas penduradas em uma viga. A construção é simples e segue o mesmo padrão das demais: pedaços de compensados, tábuas e “telhas Brasilit”.
A borracharia é um exemplo clássico de como o ser humano consegue se adaptar às diversas condições para conseguir sua subsistência. O mais simples empreendimento, uma borracharia, marca o início do desenvolvimento do comércio local.
Reforçando a expansão econômica da ocupação, está um salão de beleza. A placa, escrita com letras vermelhas em um fundo branco, anuncia os diversos serviços oferecidos: manicure, pedicure, cílios, sobrancelhas, cabelo, escova e selagem. A decoração fica por conta de uma flor solitária, desenhada em um dos lados.
No interior do salão, que tem duas paredes construídas pela metade, é visível uma prateleira repleta de esmaltes e outra com produtos que, aparentemente, são para o cabelo. Um espelho complementa o cenário, item usado para que as clientes acompanhem o procedimento de beleza e avaliarem o resultado final.
O salão de beleza é um marco neste local ocupado por casebres e reflete o sentimento de que, mesmo diante das situações mais insalubres, pessoas – principalmente mulheres – podem buscar por algo além do básico para sobreviver. Afinal, viver com dignidade não se restringe a ter uma moradia íntegra, mas também alcançar realizações pessoais, autonomia, respeito e valorização enquanto pessoa humana.
Em um lugar sem energia elétrica, água encanada e onde pessoas vivem com o mínimo, a luta pela sobrevivência passa pelos pequenos negócios, mas também é vista em outras oportunidades. Como as pequenas plantações que existem no “Bairro Ferrovia”. Canteiro para temperos, cultivo de feijão, banana e macaxeira são alguns dos meios que os ocupantes encontraram para sobreviver. Alimentos que são base para a alimentação de milhões de brasileiros e que em um cenário de desamparo, se tornam o mínimo para quem não tem quase nada.
(Luciana Araújo)